Ficha do Proponente
Proponente
- Mariana Souto (UnB)
Minicurrículo
- Professora do curso de Audiovisual e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de Brasília. Doutora pela UFMG com período sanduíche na Universitat Pomeu Fabra e pós-doutorado pela ECA-USP. Autora de “Infiltrados e invasores: uma perspectiva comparada sobre relações de classe no cinema brasileiro” (Edufba, 2019). Foi curadora de mostras e festivais como Janela Internacional de Cinema de Recife e Festcurtas BH. Diretora de arte de algumas produções da Filmes de Plástico.
Ficha do Trabalho
Título
- De O som ao redor a Propriedade: a explicitação da violência nas relações de classe no cinema br
Seminário
- Estudos Comparados de Cinema
Resumo
- O trabalho investiga a violência nas relações de classes no cinema brasileiro contemporâneo, apontando a transição de um retrato mais sutil e alusivo para uma abordagem explícita e brutal. Por meio de uma comparação ponto-contraponto (Xavier, 1983), aproximamos um filme da primeira metade da década de 2010 – O Som ao Redor (2012) – de uma obra mais recente – Propriedade (2023). No conjunto, vemos a transição para uma luta de classes mais literal e sangrenta.
Resumo expandido
- Nos anos 2010, um conjunto de filmes tendia a abordar questões de classe e conflitos sociais de forma latente, construindo atmosferas de um mal-estar difuso, com violências apresentadas de forma sutil e insinuada. Em filmes como Trabalhar cansa (J. Rojas e M. Dutra, 2011), O som ao redor (K. Mendonça Filho, 2012), Casa grande (F. Barbosa, 2014) e Que horas ela volta? (A. Muylaert, 2015), o medo permeava as relações de alteridade a ponto de algumas dessas obras flertarem com o gênero do horror.
Se olharmos para a geração de filmes imediatamente posterior (da segunda metade da década de 2010 até o início dos 2020), observamos uma transformação significativa. Se os primeiros filmes mencionados apresentavam incômodos fugidios, tensões dissimuladas e fermentavam conflitos lentamente, em situações hostis espalhadas aqui e ali, filmes mais recentes, como O animal cordial (Gabriela Amaral Almeida, 2017), O Clube dos canibais (Guto Parente, 2018), Bacurau (Kleber Mendonça Filho, 2019) e Propriedade (Daniel Bandeira, 2022) explicitam e declaram as disputas sem disfarces. Se lá a violência era verbal, psicológica ou velada, agora é física, explícita e recebe toques de barbaridade. Se antes apenas flertavam com o horror, agora assumem o filme de gênero. A hipótese é de que essa nova geração de obras pode ser entendida como uma continuidade do momento anterior, mas com a exacerbação de alguns traços antes apenas sugeridos e com características próprias, que aqui buscaremos examinar, além de tentar compreender suas motivações.
Para operar a verificação dessa transformação, optamos por uma metodologia comparatista (Aumont, 1996; Souto, 2019) ao constituir uma dupla de filmes: O som ao redor e Propriedade. A inspiração para esse gesto surge especialmente de Sertão Mar (1983), em que Ismail Xavier analisa Barravento e Deus e o Diabo na terra do sol, justapostos com contrapontos escolhidos, respectivamente O pagador de promessas e O cangaceiro. Nessa aposta, os contrastes entre clássico e moderno se acentuam. Nas palavras do autor, “como assumo que a melhor análise é aquela que enriquece a percepção das diferenças, dos conflitos, da mútua negação existente entre estilos alternativos, organizei o trabalho na base do ponto-contraponto” (Xavier, 1983, p. 14). Lá, o olhar mais interrogativo cabia aos filmes de Glauber, enquanto os contrapontos surgiam para demarcar alguns traços específicos. Em nosso caso, o foco está no filme mais recente, enquanto o anterior surge de forma mais breve para aguçar o olhar.
O final de O som ao redor parece lançar pistas para o futuro, atuando como importante ponto de transição. O filme cozinha em banho-maria uma animosidade crescente entre diversos personagens de seu núcleo urbano. Essa tensão, no entanto, culmina numa cena final em que o embate fica em suspenso. Francisco, o patriarca da família protagonista, recebe dois vigias em seu apartamento para uma conversa. Ali, eles finalmente revelam sua verdadeira identidade e o propósito de vingança. O confronto, no entanto, fica no extracampo. A cena corta para outra e a palavra “fim” vem sobre imagem congelada. A violência efetiva apenas começa a acontecer e é interrompida.
Propriedade, dez anos depois, já começa com uma cena de violência: um homem mantém uma mulher como refém enquanto negocia com policiais. A polícia atira na cabeça do bandido, enquanto as pessoas ao redor celebram. Mais tarde, o filme se concentra num motim dos trabalhadores de uma fazenda contra o casal de proprietários. A mulher foge para o carro, lá ficando presa, tentando se abrigar contra a revolta e os ataques dos funcionários.
Analisaremos, no filme, além da relação com filme de Kleber Mendonça, a perspectiva adotada, o uso das convenções do horror – e do gore -, assim como as características e marcas da violência dessas relações de classe (como a animalização de alguns personagens). Um dos objetivos deste trabalho é também explorar as potencialidades da comparação ponto-contraponto.
Bibliografia
- ARAÚJO, Inácio. Filme Propriedade brilha ao dar vida aos fantasmas da escravatura. Folha de São Paulo, São Paulo, dez. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/12/filme-propriedade-brilha-ao-dar-vida-aos-fantasmas-da-escravatura.shtml.
AUMONT, Jacques. Pour un cinéma comparé: influences et repétition. Paris: Cinemathèque Française, 1996.
FEIX, Daniel. De Capitão Nascimento a Jair Bolsonaro: sintomas do fascismo no cinema brasileiro 2007-2018. Tese de doutorado do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2024.
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SOUTO, Mariana. Infiltrados e invasores – uma perspectiva comparada sobre relações de classe no cinema brasileiro. Salvador: Edufba, 2019.
XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac & Naify, 2