Ficha do Proponente
Proponente
- Ramayana Lira de Sousa (UNISUL)
Minicurrículo
- Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem e do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade do Sul de Santa Catarina. Membro do Comitê Científico da SOCINE. Pesquisadora do Instituto Ânima
Coautor
- Alessandra Soares Brandão (UFSC)
Ficha do Trabalho
Título
- “Um instrumento de seu prazer”: o cinema como dildolândia
Seminário
- Tenda Cuir
Resumo
- Com base na pesquisa para um curta sobre a relação de mulheres cuir e pessoas trans com brinquedos sexuais, esta apresentação parte da proposta de Maria Lugones de alianças minoritárias criativas e lúdicas. Assim, forma-se uma comunidade cuir brincante, onde o trauma do “sair do armário” se desloca para o gesto de “tirar da gaveta”, discutindo metodologias que, ao cuirizar o brinquedo, talvez ludifiquem o cuir.
Resumo expandido
- “Mel”, canção com letra de Waly Salomão e composição de Caetanos Veloso e canonicamente conhecida na voz de Maria Bethânia, diz assim: “Ó abelha rainha / faz de mim / um instrumento de teu prazer / sim, e de tua glória”. Notadamente, a voz poética se entrega como meio para alcançar o prazer, desfazendo, assim, toda uma agência da subjetividade liberal que se baseia na distinção entre sujeito e objeto, entre quem dá e quem recebe a glória do gozo. Fazer-se instrumento, meio, e não fonte ou destino, eis o desafio. Ou, antes, não fazer-se, mas ser “feita” instrumento, abrindo mão de vez da agência em nome da abertura radical à alteridade. A súplica da canção nos inspira a pensar que esse instrumento do prazer tem menos a ver com a procura teleológica do orgasmo como finalidade da relação e está melhor colocada em uma possibilidade de pensar que essa glória, deslocada de seu sentido especificamente teológico, aproximando-a de outro tipo de regozijo: a profanação que vem do gesto lúdico e criativo.
É a partir dessa noção de “instrumento” que desativa seu sentido mais utilitário e o avizinha do brincar e do brinquedo que pensamos o projeto de realização de um documentário de curta-metragem intitulado, exatamente, “Um instrumento de teu prazer”, cujo processo de pesquisa em andamento buscaremos relatar, discutir e teorizar nesta apresentação. Neste processo, evocamos tês conceitos já trabalhados em outros encontros da SOCINE: bodylands, inventariação e velcro. O primeiro nos ajuda a pensar o cinema como um território, um “Um entre-lugar na paisagem audiovisual que abriga as construções de uma geografia do desejo lésbico entre a existência e o apagamento, entre a negação e a morte, mas que também enseja modos de desestabilizar a cisheteronormatividade dominante nos filmes” (Brandão; Sousa, 2020, p. 110). Assim como encontramos uma paisagem para o desejo lésbico em bodylands, queremos com “Um instrumento de seu prazer” colaborar com a construção de uma paisagem onde os brinquedos sexuais apareçam como meios de “desestabilizar a cisheteronormatividade dominante nos filmes”, parte de uma dildolândia. O segundo conceito, inventariação (Sousa; Brandão, 2020), aparece como possibilidade para pensar a criação lúdica de arquivos de prazeres e existências cuir, onde o exercício da imaginação não se en contra mais imantado pelo trauma do “sair do armário” , mas pelo gesto de “tirar da gaveta”, de modo que os objetos não sejam entendidos como parte do mundo secreto e privado de cada pessoa, mas, antes, como prolongamento de uma imaginação compartilhada. Por fim, o velcro (Sousa; Brandão, 2024) sugere formas de organização das imagens disparadas pelo desejo cuir e lésbico.
Tendo esses conceitos como fundamento, também evocamos a discussão de Maria Lugones (2003) sobre a ludicidade (playfulness). Lugones argumenta que a ludicidade envolve risco, invenção e ruptura. Ela rompe porque, ao acolher diferentes formas de viver e perceber o mundo, ameaça certezas e desfaz estruturas baseadas em uma única perspectiva. Ao subverter regras estabelecidas, o brincar/jogar cria suas próprias normas, abrindo espaço para outras possibilidades de relação. Para Maria Lugones, essa ludicidade, quando sustentada por vínculos afetivos e experiências compartilhadas, pode gerar modos mais inclusivos de estar junto. Mas o jogo também é arriscado: sua força criadora e destrutiva pode tanto fortalecer comunidades quanto produzir novas formas de exclusão.
Os instrumentos/brinquedos, então, aparecem como possibilidades mediadoras, não genitalizantes, mas ludificantes. E propomos, também, que essa atitude lúdica se mostra como fértil metodologia de encontro entre as pessoas no processo de pesquisa e realização de documentários onde, através da mediação do brinquedo/brincar tirado da gaveta, podemos ver emergir um mundo em comum, habitado por corpos orgânicos e inorgânicos.
Bibliografia
- BRANDÃO, Alessandra Soares; SOUSA, Ramayana Lira de. Bodylands para além da in/visibilidade lésbica no cinema: brincando com água. Rebeca – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, [S.L.], v. 9, n. 2, p. 98-118, 15 dez. 2020.
LUGONES, María. Pilgrimages/Peregrinajes: Theorizing Coalition against Multiple Oppressions. Lanham: Rowman & Littlefield, 2003.
SOUSA, Ramayana Lira de; BRANDÃO, Alessandra S.. Inventário de uma infância sapatão em um mundo de imagens. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, [S.L.], v. 3, n. 9, p. 121-137, 31 ago. 2020.
_______. Des/col(oniz)ando o velcro: modo de ver o cinema. In: XXVII Encontro SOCINE, 2024, Campo Grande.