Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Júlia Meireles de Lima (UNICAMP)

Minicurrículo

    Natural de Recife, é doutoranda em Multimeios pela UNICAMP, onde pesquisa intimidade, história e autobiografia no cinema de Jean Eustache. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com pós-graduação lato sensu em História da Arte pela FAAP e graduação em Cinema pela UFPE. Atua também como roteirista.

Ficha do Trabalho

Título

    Espaço e autobiografia no cinema de Jean Eustache: um estudo de “A Mãe e a Puta”

Resumo

    Esta análise investiga “A Mãe e a Puta” (1973), de Jean Eustache, a partir de sua dimensão autobiográfica para compreender a representação dos espaços do filme como índices da vida do diretor e do momento histórico do pós-Maio de 68. Mais do que meros cenários, acredita-se que esses espaços se tornam extensões dos personagens e do próprio Eustache, refletindo a vivência íntima do diretor e a atmosfera de uma cidade em transição, atravessada por desilusões políticas e mudanças socioculturais.

Resumo expandido

    Mobilizando as noções de autobiografia (LEJEUNE, 1975) e espaço biográfico (ARFUCH, 2010), propõe-se, nesta comunicação, uma análise dos espaços representados no longa-metragem “A Mãe e a Puta” (1973), de Jean Eustache. Sendo o filme em questão baseado diretamente na vida do diretor, que comumente embaralha ficção e vida pessoal, os espaços físicos operam como uma espécie de corpo rememorativo, suscitando pistas sobre o tempo histórico retratado: o pós-Maio de 1968. Sob essa perspectiva, sugere-se que os espaços filmados não apenas desvelam traços íntimos do cineasta, mas também condensam a atmosfera sociocultural da época, funcionando como registros tanto de sua experiência pessoal quanto do contexto histórico retratado.

    Curiosamente pouco estudado no Brasil, Jean Eustache é considerado por autores como Michel Marie (2013) e Alain Philippon (2015) um dos principais nomes do movimento que se convencionou chamar de pós Nouvelle Vague. Nascido no interior da França e com uma breve carreira interrompida por seu suicídio, Eustache volta-se frequentemente em suas produções para aspectos de sua vida pessoal: a adolescência em “Papai Noel tem olhos azuis” (1966); a cidade natal em “A Rosa de Pessac” (1968) e “A Rosa de Pessac” (1979); sua avó em “Numéro Zéro” (1971); a infância em “Meus Pequenos Amores” (1974) e seus conflitos amorosos em “A Mãe e a Puta” (1973) – sendo, este último, o foco da minha análise.

    No longa de 220 minutos, Eustache aborda um período específico de sua vida, no qual manteve, na Paris do pós-Maio de 1968, uma relação simultânea com duas mulheres: Catherine Garnier e Marinka Matuszewski. Obcecado em representar essa dinâmica da forma mais fiel possível, o cineasta foi extremamente exigente com os atores e a escolha das locações, deixando pouco ou nenhum espaço para improvisações ou adaptações cênicas (BÉRAUD, 2017). Esse rigor resulta em um filme que se pretende espelho – ainda que indubitavelmente opaco – da realidade vivida: uma tentativa de rememorar o passado como forma ritualística de autorrepresentação, como se a “verdade” do cinema recaísse no biográfico.

    Nesse sentido, como aponta Antoine de Baecque (2010), as ruas de Paris, o apartamento de Marie (que foi filmado no próprio apartamento de Catherine Garnier) e os cafés parisienses não são apenas cenários da narrativa, mas também espaços afetivos rememorados e tensionados. Inscrito na vida cotidiana parisiense e impulsionado estilisticamente pelo filmar a rua proposto ainda na Nouvelle Vague, Jean Eustache faz de seu protagonista em um flâneur que, assim como ele – e sua câmera –, percorre a cidade, os cafés e a casa de sua namorada. Os espaços urbanos e domésticos, além de comporem a ambientação do filme, são intrínsecos à sua construção imagética e narrativa. Mais do que representados, os espaços no filme de Eustache são corporificados (PRYSTHON, 2013), isto é, deixam de ser pano de fundo e ganham o corpo da narrativa – criando, para emprestar um termo de Antoine de Baecque, “uma paisagem urbana interior” (DE BAECQUE, 2010, p. 28-29).

    A obra, portanto, estabelece uma dupla convergência nas imagens: por um lado, os espaços servem como índices da vida do diretor; por outro, compõem um retrato da Paris dos anos 1970 – suas avenidas, cafés, quartos, alojamentos, lojas e paisagem urbanística, elementos indissociáveis da experiência fílmica.

    A partir da articulação entre autobiografia e representação espacial, esta análise concebe a leitura de “A Mãe e a Puta” como um registro autobiográfico ancorado em seus personagens e seus espaços. Mais do que uma “paisagem urbana interior”, esses cenários configuram um testemunho visual de uma Paris politicamente frustrada, rendida à nova rodada de transformações do capital, na qual vemos amalgamada, com visível desconforto, a memória íntima do cineasta.

Bibliografia

    ARFUCH, Leonor. O Espaço Biográfico: Dilemas da Subjetividade Contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

    BAECQUE, Antoine de. Dans Paris. In: DUPRAT, Arnaud; LOWY, Vincent. La Maman et la Putain, Jean Eustache: Politique de l’intime. Lormont: Le Bord de l’eau, 2020

    BÉRAUD, Luc. Au travail avec Eustache (Making of). Arles: Institut Lumière/ Actes Sud, 2017.

    LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Org. Jovita Maria Gerheim Noronho, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008

    MARIE, Michel. Quebec – França, voltas, reviravoltas, vaivéns nas duas direções. Rebeca- Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, ano 2, n. 4, p. 86-109, 2013.

    PHILIPPON, Alain. Jean Eustache. Paris: Cahiers du Cinéma, 2015

    PRYSTHON, Ângela. CINEMA, CIDADES e memória. CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS, v. 5, n. 10, 2013.

    SIGNIFICAÇÃO: Revista de Cultura Audiovisual, v. 45, n. 50, 2018. Dossiê: Os anos 1968 no cinema.