Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Susana Dobal (UnB)

Minicurrículo

    Susana Dobal é fotógrafa e pesquisadora. Foi professora titular na Universidade de Brasília, onde ainda orienta pesquisas, participou de diversas exposições, publicou artigos sobre cinema, fotografia e arte contemporânea. Publicou o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (2010), e co-editou os livros Fotografia contemporânea entre fronteiras e transgressões (2013) com Osmar Gonçalves; A Paisagem como narrativa (2022) com Rafael Castanheira. Site: www.susanadobal.com

Ficha do Trabalho

Título

    A montagem como espelho da percepção: diálogo entre Imagem e Palavra e Marinheiro das Montanhas

Seminário

    Edição e Montagem audiovisual: reflexões, articulações e experiências entre telas e além das telas

Resumo

    Os filmes Imagem e Palavra do Jean-Luc Godard e Marinheiro das Montanhas do Karim Aïnouz sugerem questões sobre a montagem no cinema que vão além da dicotomia entre a montagem clássica e a montagem intelectual; eles não buscam contar uma história com começo, meio e fim, nem informar sobre um assunto documentado. Com base na fenomenonogia do Merleau-Ponty, investigamos como eles trazem à tona elementos que aproximam a montagem de processos mentais implícitos à percepção associada à memória.

Resumo expandido

    Dois filmes distantes entre si trazem algumas cenas afins e principalmente um mecanismo de montagem baseado em funcionamento a passos tão largos quanto os que efetuam a percepção e a memória. Os tanques irrompem em uma floresta da Segunda Guerra Mundial, assim como na Esplanada dos Ministérios em Brasília; um homem sentado no norte da África acaricia serenamente uma cabra, e outra, também com chifre em parafuso, aparece amarrada em uma rua de Argel, também em longo plano no final do filme; assim como o trem e os trilhos passam reiteradamente em um filme, também as nuvens e as ondas no outro filme apontam para um estado de flutuação. Em ambos não se trata mais de fazer avançar os acontecimentos de uma narrativa, pois quem rege a montagem é a memória, que opera por associações aparentemente tão distantes quanto as que ocorrem em um sonho, sendo que aqui também as conexões não têm nada de arbitárias.

    Os filmes Imagem e Palavra (Le Livre d’Image), de Jean-Luc Godard (2018) e Marinheiro das Montanhas, de Karim Aïnouz ( 2023) têm em comum não apenas essas cenas semelhantes dispersas, mas um processo de montagem que anuncia questões novas quando já não se trata apenas de filmar, mas de remontar o que já foi filmado. O processo de montagem, nesses filmes, está mais próximo da montagem intelectual teorizada por Eisenstein do que da montagem do cinema clássico, mas dizem respeito principalmente ao processo mental de como se dá a percepção, e ele funciona por meio de saltos mais, ou menos, enigmáticos, que a fenomenologia do Merleau-Ponty ajuda a compreender.

    Quando, no seu famoso texto sobre montagem, Godard (1956) assinalou a relevância dela para o cinema, ele estava interessado na implicação recíproca entre a direção e a montagem. No contexto do filme Imagem e Palavra, não há mais atores a serem dirigidos, os cortes são resolvidos na montagem, não no set de filmagem, e as questões que se colocam agora dizem respeito ao gerenciamento de imagens já realizadas. Nesse momento da carreira do Godard, a instituição “personagem” diluiu-se, seu interesse pesa mais para o lado da História e da responsabilidade do fazer cinematográfico perante ela. Consequentemente, as questões que se colocam para a montagem são outras que não aquelas da década de 1950.

    Karim Ainouz, por outro lado, traz também na bagagem uma filmografia que questiona as convenções da transparência do cinema clássico e a separação entre ficção e documentário. Também no seu filme, a narrativa caminha não mais para contar uma história definitiva ou convencer sobre um acontecimento documentado, pois aqui a afinidade maior é com o filme-ensaio, onde a fronteira entre a ficção e o documentário pode se embaralhar.

    Em Marinheiro das Montanhas, Aïnouz embarca em uma viagem para a Argélia em busca das suas origens pelo lado paterno. Para isso, ele dispõe dos encontros que vai ter no caminho e de um acervo de imagens tanto pessoais quanto da história do país de origem e de destino. Ao associar as vidas dos seus pais ao contexto maior da História, a montagem explora aqui também recursos como a defasagem entre a narração e as imagens, ou associações mais fluidas e menos pragmáticas com a irrupção de cenas aparentemente arbitrárias. O que se encena no universo desses dois filmes é o jogo entre a memória e a percepção. Nas palavras de Merleau-Ponty, as percepções são relações, e não termos absolutos: “Antes de qualquer contribuição da memória, aquilo que é visto deve presentemente organizar-se de modo a oferecer um quadro em que eu possa reconhecer minhas experiências anteriores. Assim, o apelo às recordações pressupõe aquilo que ele deveria explicar: a colocação em forma dos dados, a imposição de um sentido ao caos sensível” (MERLEAU-PONTY,44). É o que se vê encenado nesses dois filmes: ambos recorrem a um acervo de imagens para desvendar a história, seja ela coletiva ou individual, expondo assim o fluxo de relações que a percepção e a memória buscam para dar sentido ao caos.

Bibliografia

    BAECQUE, A. Jean-Luc Godard et la critique des temps de l’histoire. Vingtième Siècle. Revue D´Histoire 2013/1. N. 117. p.149-164.
    DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. Cosac Naify, São Paulo: 2004.
    FERREIRA, Pablo. Retratos a meia voz: o discurso epistolar como vibração e presença no cinema de Karim Aïnouz. Tese de Doutorado (Comunicacão). UnB, Brasília, 2025.
    GODARD, J-L. Montage, mon beau souci. In: Cahiers du Cinema, n.65, dez. 1956,p. 30-31.
    LEBOW, A. The Effect of the Real: A Conversation with Karim Aïnouz. Film Quarterly,76 (1), 2022, p. 54–64.
    MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
    MOURÃO, M. D. G. A montagem cinematográfica como ato criativo. In: Significação: Revista De Cultura Audiovisual, 33(25), 2006, p.229-250.
    RAMOS, Fernão. O Novo Godard. Jornal da UNICAMP. Campinas, SP. 29 mai 2019.
    TEIXEIRA, F. E. Do experimental ao filme-ensaio: passagens. Significação: Revista de Cultura Audiovisual, (USP), v. 49, n. 58, 2022, p. 1-17.