Ficha do Proponente
Proponente
- Cristiane Freitas Gutfreind (PUCRS)
Minicurrículo
- Doutora em Sociologia pela Universidade Paris V (Sorbonne). Professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) no curso de Produção Audiovisual e no PPGCOM. Bolsista produtividade do CNPq. Foi professora visitante na Université Paul Valéry – Montpellier 3 (2007 e 2023). Líder dos grupos de pesquisa Cinema e Audiovisual: comunicação, estética e política (Kinepoliticom) e Cinema, Audiovisual, Tecnologias e Processos Formativos (Encruzilhada).
Coautor
- Márcio Zanetti Negrini (PUCRS / UNISO)
Ficha do Trabalho
Título
- Reflexões sobre a ignorância: memória e política no documentário Domingo no Golpe
Resumo
- O trabalho analisa o documentário Domingo no Golpe (2023), que elabora criticamente a memória do atentado contra a democracia brasileira em 8 de janeiro de 2023. A partir de reconfigurações de imagens de câmeras de vigilância, o filme denuncia a violência produzida pela ignorância politicamente instrumentalizada e os traços do autoritarismo que evoca a Ditadura Civil-Militar.
Resumo expandido
- A ignorância tornou-se uma referência recorrente na contemporaneidade, especialmente diante de ações e imagens que revelam a barbárie, o falso, o negacionismo científico e o revisionismo histórico. Para além da ausência de conhecimento, ela repercute nas estruturas políticas, sociais e culturais, ao ser instrumentalizada por interesses econômicos e ideológicos – como os voltados à perpetuação das desigualdades. Essa “ignorância funcional” apoia-se na sobrecarga informacional da era digital, em que o excesso de dados pode gerar paralisia crítica e diluir os critérios que distinguem o relevante do irrelevante. Soma-se a esse quadro a desinformação, sustentada por redes automatizadas de boatos, que corroem as bases do conhecimento compartilhado. É nesse cenário que, segundo Peter Burke (2023), emergem as “guerras culturais”, em que a disputa por valores, narrativas e memórias assume o contorno de uma batalha pelo controle do que deve ser lembrado – ou esquecido. Em contraponto, filmes de ativismo organizam saberes e a memória social diante dos conflitos políticos e das adversalidades de nosso tempo, marcado pela reverência à ignorância.
A tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, no Brasil, expôs os efeitos da ignorância politicamente instrumentalizada. O episódio revelou a fragilidade institucional diante da violência e da desinformação, inserindo-se numa orquestração mais ampla de ameaças sistemáticas à democracia. Em 2025, a Procuradoria-Geral da República denunciou o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros envolvidos – inclusive militares – por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e organização criminosa armada. Segundo a denúncia, os ataques foram fomentados por integrantes das Forças Armadas e civis que pretendiam anular o resultado das eleições. Também foram planejados atentados contra o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente e o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Essa mobilização autoritária, marcada por crenças persecutórias e ressentimentos nutridos pela desinformação, evidencia a força das guerras culturais na articulação entre ignorância, discurso político e violência – e convoca o cinema a uma atuação crítica na elaboração da memória dos acontecimentos.
Este trabalho analisa como o documentário Domingo no Golpe (Giselle Beiguelman e Lucas Bambozzi, 2023) reflete sobre o atentado de 8 de janeiro. O filme propõe indagações sobre a subjetivação dos sujeitos em seu espaço social e traduz visualmente marcas de ressentimentos ao mobilizar a consciência do espectador diante da realidade política. O documentário foi realizado com arquivos das câmeras de segurança do Palácio do Planalto, revelando a fragilidade do poder institucional, denunciando os atos golpistas e evidenciando os rastros da Ditadura Civil-Militar arraigados na sociedade, além da reverberação da ignorância em sua estrutura política. Ao reconfigurar esses registros, o filme mobiliza o potencial indicial da imagem, mas, é no gesto de montagem que o real se torna experiência – não como prova definitiva, mas como forma sensível de interrogação do mundo Niney (2002).
A análise fílmica, associada ao conceito de figura (Dubois, 1999) como instrumento metodológico, permite compreender a construção visual como algo que emana da própria imagem e se relaciona às emoções. Busca-se, assim, resgatar o sentido histórico da apropriação contemporânea da Ditadura. O confronto é parte do político e encontra no poder sua força motriz, mas, ao transformar o outro em inimigo e acirrar diferenças, é manipulado para ameaçar grupos opositores (Mouffe, 2015). O regime militar deixou como herança uma cultura autoritária reatualizada, que aprofunda desigualdades e se expressa na ignorância manifesta na intolerância à diferença. As estratégias estéticas do documentário permitem refletir sobre as configurações do político na imagem e compreender a história recente, assombrada pelo autoritarismo.
Bibliografia
- BURKE, Peter. Ignorância – uma história global. São Paulo: Vestígio, 2023.
DUBOIS, Philippe. “L’écriture figurale dans le cinéma muet des années 20”. IN : Figure, figural. Paris : L’Harmattan, 1999.
NINEY, François. L’épreuve du réel à l’écran. Essai sur le príncipe de réalité documentaire. Paris: De Boeck, 2002.
MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
SOARES, Luiz Eduardo. O Brasil e o seu Duplo. São Paulo: Todavia, 2019.