Ficha do Proponente
Proponente
- Hermano Arraes Callou (UFRJ)
Minicurrículo
- Hermano Callou realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ.
Ficha do Trabalho
Título
- Figuras do autoengano nos contos morais de Eric Rohmer
Seminário
- Estudos Comparados de Cinema
Resumo
- Esta comunicação pretende investigar comparativamente os protagonistas narradores dos seis contos morais de Eric Rohmer, a partir da noção de autoengano. O ponto de partida do trabalho é o de que a possibilidade de mentir para si mesmo é um dos temas centrais do ciclo, que encena uma forma particular de narrador não confiável. O objetivo da comunicação é delinear algumas das figuras empregadas nos filmes pelas quais se torna imaginável a experiência paradoxal do engano de si.
Resumo expandido
- “Todo mundo cria um personagem para si”, diz Frédéric, o narrador de L’amour l’après-midi, “gosto mais do atual do que o que eu interpretava antes”. O personagem que ele agora interpreta para si é o do marido fiel, que ama a própria esposa e, sobretudo, ama amar a própria esposa. Durante a tarde, vemos Frédéric se encontrar com Chloé, uma antiga conhecida, com quem desenvolve uma relação de fundo amoroso cujo pacto silencioso é de que ela nunca deve se efetivar. “Nunca pensou em viver duas vidas simultaneamente, mas de um jeito completo e perfeito?”, ele diz, logo após perguntar se ela não casaria com ele – não nessa, mas em outra vida.
O tema da infinidade das vidas possíveis havia sido introduzido logo no início do filme, em que vemos o personagem pelas ruas de Paris imaginando seu encontro com mulheres passantes. O narrador confessa, contudo, que não sabe mais o que de particular o atrai nas mulheres, como se seus devaneios sexuais o protegessem, na verdade, do risco do seu próprio desejo. O que Frédéric deseja não é levar uma vida dupla, mas viver as possibilidades indefinidas da vida enquanto tais. A sua dificuldade no casamento, confessa, reside justamente em “levar muito a sério” sua esposa, como se, diante dela, o jogo das meras possibilidades imaginárias se visse ameaçado pela vergonha de desvelar a si mesmo.
O protagonista de L’amour l’après-midi é um herói típico dos contos morais de Eric Rohmer. O que caracteriza o herói dos contos morais rohmerianos é a sua capacidade de refletir sobre si mesmo e deliberar a respeito de suas ações segundo o que o ciclo denomina de “moral”, um conjunto de comprometimentos existenciais pelos quais eles pretendem viver o que consideram uma vida digna de ser vivida. Os filmes de Rohmer nos mostram, contudo, uma imagem profundamente intrigante da agência moral: as figuras masculinas que constituem seus heróis parece padecer de uma profunda cegueira a respeito de si mesmos. A jornada dos personagens levanta não apenas a suspeita que as crenças e intenções que atribuem a si mesmos podem ser falsas, mas que são o resultado de uma forma de autoengano. O personagem de Frédéric parece interpretar bem demais o personagem do bom marido. Ele também parece ter se convencido da fantasia de viver as possibilidades da vida enquanto tais, como se fosse possível realizá-las sem vê-las tomar realidade.
A noção de autoengano é uma formulação paradoxal da psicologia filosófica (Davidson, 2004). O indivíduo em autoengano é alguém que mente para si mesmo. Como pode ele se enganar se para mentir ele precisaria estar consciente tanto da própria falsidade de sua crença quanto da sua intenção em dissimulá-la? Como escreveu Sartre a respeito da má-fé, uma das formulações mais célebres da ideia do engano de si, o autoengano é um “projeto”: “eu, enquanto enganador, devo saber a verdade que me é disfarçada enquanto enganado (…), devo saber muito precisamente essa verdade para podê-la ocultá-la de mim com maior cuidado” (Sartre, 2022, p.97). O autoengano é, portanto, um fenômeno evanescente, que anula a si mesmo, sem que isso impeça que ele seja uma possibilidade existencial, capaz de se tornar o aspecto dominante de uma vida.
Esta comunicação pretende delinear as figuras do autoengano nos seis contos morais de Rohmer, analisando em particular os seus personagens narradores. Uma característica fundamental da figuração rohmeriana do autoengano reside na diferença entre o que vemos e o que é dito, posta em jogo pela “dialética entre mostrar e significar” característica da obra de Rohmer (Bonitzer, 1991, p.19). Os contos morais encenam o drama da autointerpretação dos seus protagonistas, situando-os em uma realidade formada por gestos e palavras no espaço, apreendida pela câmera enquanto profundamente ambígua, quando não indeterminada relativamente às formas de inteligibilidade reivindicadas pelos seus protagonistas.
Bibliografia
- CRISPIN, Colin. Eric Rohmer: Realist and Moralist. Bloomington: Indiana University Press, 1988.
DAVIDSON, David. Deception and Division. In: ______. Problems of Rationality. New York: Oxford University Press, 2004.
BONITZER, Pascal. Eric Rohmer. Paris: Cahiers du Cinéma, 1991.
GARCIA, Alexandre Rafael. Contos Morais e o Cinema de Éric Rohmer. Curitiba: A Quadro, 2021.
HANDYSIDE, Fiona (org.). Eric Rohmer: Interviews. Jackson: university Press of Mississipi, 2013.
HÖSLE, Vittorio. Eric Rohmer: Filmmaker and Philosopher. London: Bloomsbury Academic.
MORAN, Richard. Authority and Estrangement: an Essay on Self-knowledge. Princeton: Princeton University Press, 2001.
ROHMER, Eric. Le Goût de la Beauté. Paris: Flammarion, 1989.
SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. São Paulo: Vozes, 2022.