Ficha do Proponente
Proponente
- Julherme José Pires (Unifesp, UEM)
Minicurrículo
- Professor colaborador no curso de Comunicação e Multimeios da UEM e pós-doutorando no PPG de História da Arte da Unifesp (bolsa CNPq). É doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos, na linha de pesquisa Mídias e Processos Audiovisuais. Atuou como docente no Departamento de Linguagens e Comunicação da UTFPR e no ensino médio do Colégio Unochapecó, foi pesquisador da Fapergs no Centro de Produção Audiovisual TECNA-PUCRS e técnico na UnowebTv. Também é artista do cinema e da literatura.
Ficha do Trabalho
Título
- Retratos fantasmas e ligações ao passado: a mise-en-archives em Kleber Mendonça Filho
Seminário
- Teoria de Cineastas: dos processos de criação à dimensão política do cinema
Resumo
- Esta comunicação aproveita reflexões firmadas em ‘Retratos fantasmas’ (2013), de Kleber Mendonça Filho, com o apoio de toda a sua filmografia, para discutir a natureza estética nas obras do cineasta e as suas relações com os conceitos de tempo e história. A forma como ele constrói espaços profundos se dá por meio de mise-en-archives, através movimentos centrífugos, hipertextuais e coalescentes, em que a memória assombra continuamente as imagens.
Resumo expandido
- A cena é a seguinte. Imagens do antigo Cine Veneza do Recife antes de sua inauguração, em 1970. Mulheres em trajes futuristas agindo sobre um espaço moderno, como tripulantes de uma nave espacial. Corta para o dia da inauguração. Pessoas importantes da sociedade são recepcionadas com rosas e drinques. O narrador contextualiza a cena, abre horizontes e conduz o espectador nessa micro-história, com informações breves sobre o cinema e seus donos. Revela que passou anos indo a esse cinema: “aí a relação fica emotiva e confusa”, conclui. Durante boa parte dessa sequência um telefone de disco toca, oculto – até aparecer, como última imagem desse arquivo. Corta para o narrador em pessoa, sentado a uma mesa em casa, ao telefone. Ele não é atendido.
A cena descrita é de ‘Retratos fantasmas’ (2023), documentário de Kleber Mendonça Filho, em que se narra boa parte de sua história, de sua família, da casa onde morava e dos lugares onde frequentava no Centro do Recife. Além disso, é uma espécie de síntese temática e formal de sua proposta para o cinema, o que para nós é uma oportunidade para compreender a visão e o processos estéticos do cineasta. Esta comunicação aproveita das reflexões firmadas no filme, com o apoio de toda a sua filmografia, para discutir suas relações com os conceitos de tempo e história, problematizando o que temos chamado de mise-en-archives. A partir de uma abordagem arqueocartográfica, escavamos e mapeamos Rf, realizando sucessivas aproximações, análises, comparações e contextualizações.
Em entrevista à TV Globo, KMF disse que “Retratos fantasmas é um álbum de família da cidade do Recife”. Essa afirmação não destoa de análise debruçada sobre seus filmes, ao indicar que seu tema central é a memória – interpretando-a como “sobrevivência das imagens passadas” (Bergson, 2010, p. 69). Para o making of de Aquarius (2016), ele disse que “quando se fala de arquivos, fala-se de documentos, papéis, mas na verdade eu acho que cada pessoa é um arquivo, é um arquivo humano” (Calazans, 2016). A mise-en-archives produzida por ele é caracterizada por movimentos centrífugos, hipertextuais e coalescentes, em que a memória pressiona a imagem, como se considerasse que “o presente é somente o grau mais contraído do passado” (Deleuze, 2012, p. 136).
Para constituir seus personagens e os espaços onde agem, confere imagens de múltiplas temporalidades. A sequência do Veneza em Rf é exemplar. Depois, KMF retorna ao lugar, que agora está suspenso por uma reforma inacabada. Incursão controlada, pois insere arquivos, pressionando o alargamento daquela experiência. Como se através do filme pudesse assombrar o edifício – essa é uma imagem dialética da sua obra, ou seja, “o motor dialético da criação como conhecimento e do conhecimento como criação” (Didi-Huberman, 1998, p. 179). Segundo Marks (2010, p. 313), o cinema é capaz de “descobrir o valor que é inerente aos objetos: as camadas discursivas que tomam forma material neles, os traumas mal-resolvidos que estão incrustados neles e a história de interações materiais que eles codificam”. Nos parece que esse é o esforço central da obra de KMF.
Uma das referências fundamentais do cineasta é a própria mãe, Joselice Jucá, enquanto entidade afetiva e persona historiadora. ‘O som ao redor’ (2012) é, “de certa forma”, uma adaptação de um livro dela e a Clara de ‘Aquarius’ (2016) é uma projeção dela nos seus setenta anos de idade (Mendonça Filho, 2021). A forma como ele busca construir espaços profundos através de mise-en-archives é a um modo historiador. Na tese de Benjamin (1985, p. 232), o bom historiador “capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada”. Talvez por isso seus filmes são compostos por retratos fantasmas: figuras que transpõem o tempo para se comunicar com o presente – sendo o principal entre eles o próprio artista.
Bibliografia
- BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia, técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
CALAZANS, Tiago. Fazendo Aquarius. Brasil: CinemaScópio, 2016.
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998.
MARKS, Laura U. A memória das coisas. In: FRANÇA, Andréa; LOPES, Denilson (Orgs.). Cinema, globalização e interculturalidade. Chapecó: Argos, 2010.
MENDONÇA FILHO, Kleber. Três roteiros: O som ao redor, Aquarius, Bacurau. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.