Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Cristian Borges (USP)

Minicurrículo

    Professor Associado do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da ECA-USP. Doutor pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 (CAPES) e mestre pela Universidade de Bristol (CAPES), graduou-se pela UFF e realizou pós-doutorado na Columbia/NYU (FAPESP). Cineasta e curador de mostras, dirigiu o CINUSP e presidiu a SOCINE. Publicou EM BUSCA DE UM CINEMA EM FUGA (Perspectiva/Fapesp, 2019), além de artigos e capítulos de livros no Brasil e na França.

Coautor

    RENATO SZTUTMAN (USP)

Ficha do Trabalho

Título

    A floresta cuir: notas sobre o amor desencarnado

Seminário

    Tenda Cuir

Resumo

    Em MAL DOS TRÓPICOS (2004) e QUEER (2024), a relação amorosa entre dois homens subverte a linguagem e os limites do corpo: seja pelo mergulho no universo mitológico em que um humano reencontra seu amante, agora como espírito que se transmuta em diferentes animais; seja através de um psicoativo (ayahuasca) que permite uma conexão sem palavras (telepática) envolvendo uma dupla indiscernibilidade: dos corpos dos amantes entre si e com a floresta. A mata como locus de um amor cuir desencarnado.

Resumo expandido

    Numa floresta tailandesa, dois rapazes apaixonados, Keng (Banlop Lomnoi) e Tong (Sakda Kaewbuadee), enfrentam-se num jogo que desafia distinções convencionais: entre soldado e aldeão, humano e não-humano, mito e realidade. Na segunda metade do filme MAL DOS TRÓPICOS (Tropical Malady, 2004, dir. Apichatpong Weerasethakul), a perseguição empreendida por Keng, vestido de soldado, a Tong, desnudo e já animalizado (apresentando escarificações que remetem às listras de um tigre), representa, como aponta Marie-José Mondzain (2010), “o reconhecimento, por parte daquele que persegue, da soberania de sua presa”, numa espécie de “perseguição desejante” que marca uma “viagem sem volta” às profundezas desse universo xamânico-mitológico, próprio de uma tradição do norte da Tailândia. As metamorfoses por que passa a criatura desejada e perseguida – ora encarnada em Tong, ora em um imenso tigre – apenas instigam ainda mais o hesitante Keng, que passa de caçador a caça, aderindo progressivamente a uma comunicação com os animais – em que a sua posição de humano é posta em risco – e sucumbindo cada vez mais à promessa de um amor imortal, anunciada por um macaco.
    Por outro lado, em plena floresta amazônica (desta vez recriada em estúdio), um homem maduro, Lee (Daniel Craig), e outro mais jovem, Allerton (Drew Starkey), tentam resolver suas diferenças – que passam pelo desejo desenfreado do primeiro pelo segundo – por meio de uma comunicação sem palavras, acreditando nas supostas propriedades telepáticas de uma substância psicoativa utilizada por indígenas e mestiços da região: a ayahuasca. No último terço de QUEER (2024, dir. Luca Guadagnino; adaptação do romance homônimo e algo autobiográfico de William S. Bourroughs), Lee e Allerton regurgitam seus próprios corações após tomarem o chá e antes de entrarem numa espécie de conexão telepática (“não sou bicha”, “estou desencarnado”, diz Allerton sem abrir a boca), seguida da dissolução gradual de seus corpos, agora translúcidos, na própria mata que os rodeia. Já fundidos à floresta e numa espécie de transe, os dois iniciam então uma dança ritual através da qual seus corpos se interpenetram como se ambos formassem uma só criatura simbionte. Esse atravessamento não verbal de corpos, que se derretem um no outro, resulta em uma coreografia tão catártica quanto enigmática: uma interação de espectros em meio a uma floresta tornada cuir.
    Se a condição cuir implica corpos atravessados por uma alteridade constante, inegociável e mutante, seria a floresta o locus ou abrigo privilegiado para uma experiência de amor desencarnado e que se situa além (ou aquém) da linguagem? De um lado, um mergulho num universo mitológico-xamânico tailandês, em que fronteiras entre humanos, animais e espíritos perdem a sua definição; de outro, a experiência com um psicotrópico, que faz dois homens brancos norte-americanos reverem seus próprios limites, fundindo-se com a mata de uma Amazônia utópica. A partir da comparação entre esses dois filmes, distantes no tempo e no espaço, e entre essas sequências que julgamos paradigmáticas, desejamos perseguir a relação entre os corpos cuir e uma floresta senciente, na qual a dissolução do par sexo-gênero é acompanhada da dissolução do par humano-não humano. Se o amor é de fato uma “abertura ao Outro” ou, mais que isso, um devir, que amor cuir seria esse em que o Outro é o não humano, a floresta multiespécies?

Bibliografia

    BURROUGHS, William S., Queer. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
    BURROUGHS, William S.; GINSBURG, Allen. The Yage Letters. São Francisco: City Lights, 2001.
    CODATO, Henrique. “A Ambiguidade Homem/Animal em Mal dos Trópicos e a Dimensão Xamânica da Imagem”, in E-Compós, v. 17, n. 3, set-dez. 2014, p. 1-14.
    DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: Logique de la sensation. Paris: Seuil, 2002.
    MELLO, Cecília (org.). Realismo Fantasmagórico. São Paulo: PRCEU-USP, 2015.
    MONDZAIN, Marie-José;. “A Perseguição no Cinema: um ensaio sobre Tropical Malady, de Apichatpong Weerasethakul”, in Devires, v. 7, n. 2. Belo Horizonte: 2010, p. 170-187.
    PRECIADO, Paul B. Dysphoria mundi: O som do mundo desmoronando. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.