Ficha do Proponente
Proponente
- Rafael Saar da Costa (UFF)
Minicurrículo
- Doutorando pelo PPGCine UFF. Dirigiu curtas-metragens, entre eles “Depois de tudo” e “Homem-ave”, premiados em diversos festivais. É realizador, pesquisador e montador. Seu primeiro longa, “Yorimatã”, foi exibido no Festival de Havana, Mostra de SP 2014 e ganhou o prêmio de Melhor Filme no In-Edit 2015. “Peixe abissal” estreou na Mostra de Tiradentes e ganhou os prêmios de Melhor Documentário no Queer Lisboa 2024 e Melhor Diretor no FIDBA.
Ficha do Trabalho
Título
- O testemunho em Ensaio ou MPB Especial
Seminário
- Cinema e audiovisual na América Latina: novas perspectivas epistêmicas, estéticas e geopolíticas
Resumo
- Ensaio ou MPB Especial é um programa de TV que pode ser visto como um produção musical permeada de entrevistas ou um programa de entrevistas permeado de músicas. Uma investigação pode ser elaborada em torno da voz como protagonista. De um lado a voz que canta. A voz que narra sua própria vida. É no testemunho que podemos buscar um diálogo com a chamada literatura de testemunho, e as vozes que ecoam os traumas de uma América Latina tomada por regimes de opressão.
Resumo expandido
- Ensaio estreou na TV Tupi em 1969 e fica até 1972 quando sua realização passa a ser feita através da TV Cultura com o novo nome de MPB Especial, sempre sob a direção do sergipano Fernando Faro. Fica na emissora paulista até 1975 e anos mais tarde tem sua produção retomada nos anos 1990, perdurando até 2016 sem novas interrupções. A cada episódio um retrato de um músico expoente das mais diversas vertentes e gêneros da canção popular. Na primeira fase na TV Tupi: Gal Costa e Som Imaginário, Os Incríveis, Chico Buarque, Eduardo Araújo, entre outros. Na TV Cultura, somente no primeiro ano, podemos ouvir Zimbo Trio e Silvia Maria no programa de estreia, Dorival Caymmi, Nelson Cavaquinho, Tom Zé, Alaíde Costa, Isaurinha Garcia, Sérgio Ricardo, Milton Nascimento, Jorge Benjor ou Cauby Peixoto. Nos episódios contemporâneos: Racionais MCs, Filipe Catto, Maria Bethânia, Gonzaguinha. Músicas e depoimentos sobre suas trajetórias de vida se alternam e são permeados pelo silêncio que preenche a ausência da voz de Faro ao trazer suas questões para cada personagem. Uma decupagem em planos super fechados, detalhes, silhuetas, constroem uma base de intimidade e proximidade com cada um dos retratados.
Neste trabalho elaboramos uma pesquisa em torno de Ensaio ou MPB Especial, tensionando possíveis aproximações deste programa de televisão com elementos que permeiam o estudo cinematográfico. Ensaio pode ser visto como um programa de TV musical permeado de entrevistas ou um programa de entrevistas permeado de músicas. Uma investigação pode ser elaborada em torno destes elementos sonoros que têm a voz como protagonista. De um lado a voz que canta. A voz que fala, narra sua própria vida. A ausência da voz do entrevistador, que não ouvimos e nem vemos, ouvimos o silêncio.
Aqui o silêncio é constituído de momentos em que o retratado reflete, hesita, a palavra não constitui a cena. De outro modo temos a presença em extracampo do entrevistador, e percebemos que o entrevistado escuta a questão, a palavra é inaudível e sua ausência reforça de uma lado a presença de Fernando Faro, e por outro instiga a suposição do conteúdo da pergunta. O mesmo silêncio que tanto se torna uma marca do programa no aspecto sonoro, pode ser vislumbrado em reverberação com a imagem de Ensaio. O cenário minimalista é raramente visto em sua amplitude. Com a decupagem inteiramente em planos fechados, close-ups, super close-ups, detalhes de mãos, olhos que estão sempre diante de uma luz pronunciada e da escuridão de um fundo infinito preto. Nas primeiras fases até os anos 1970, MPB Especial permanece em preto e branco. Retornou nos anos 1990 com luzes ultra coloridas e supersaturadas.
A cena constituída do depoimento pode aludir ao imaginário do senso comum criado em torno da representação do interrogatório. Estamos em ditadura civil-militar no Brasil em pleno vigor, com práticas de censura, opressão e tortura institucionalizadas. Cria-se então um espaço de liberdade de expressão do canto e do relato, que vai buscar justamente o testemunho de artistas que constituíam e constituem uma voz libertária. Nesta chave passamos a um possível diálogo com o conceito de testemunho, que na literatura, ou na chamada literatura de testemunho, pode estar ligada ao relato pós-traumático.
A cantora Elza Soares havia voltado de seu exílio na Itália, após sofrer grande perseguição política, ataques armados, ofensas racistas e ao seu relacionamento com o jogador Garrincha. É no ano de 1972 que ela grava a primeira das cinco participações no programa Ensaio. Após cantar e contar suas memórias, em ato final Elza fala diretamente para a câmera: “Muito obrigada Cultura pela chance que me deu de mostrar pelo menos alguma coisa de mim, de falar alguma coisa de mim, de falar do músico brasileiro… de falar de uma ex favelada, de alguém que lutou pra ser gente, de alguém que ainda pensa em fazer muita coisa além do que fez. E nada fiz.”
Bibliografia
- AZEVEDO, Rafael José. Tom Zé em Ensaio: entre dispositivos e performances. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012.
BALTAR, Mariana. Por uma análise sensível: corpo e sensorialidade como ponto de partida metodológico”. In: Compós, 33º Encontro Anual da Compós, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2024.
FARO, Fernando. Baixo: homenagem ao maior produtor da MPB na televisão. São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2007.
HAISKI, Vanderléia de Andrade. A literatura de testemunho na América Latina como elemento de ressignificação da memória, da dor e do trauma. Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade de Santa Maria. Santa Maria, 2021.
WELLER, Fernando. O cinema direto e a estética da intimidade no documentário dos anos 60. Tese (Doutorado) Recife: Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, 2012.