Ficha do Proponente
Proponente
- Camilo Soares (UFPE)
Minicurrículo
- Fotógrafo, cineasta e professor de Cinematografia no curso de Cinema e Audiovisual (UFPE). Doutor pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne.
Ficha do Trabalho
Título
- A fuga das imagens na geopoética da lama: possíveis desdobramentos cinematográficos de uma imagem-su
Resumo
- Ao denunciar a catástrofe ambiental trazida pelas máquinas do desenvolvimento, Davi Kopenama relata que até as imagens dos animais da floresta fogem enfurecidas para longe, dando à estética um importante papel regulador entre ser humano e natureza. Nas imagens de alguns filmes, tal visão encontra a geopoética da lama, quando atua como um ponto de tensão entre estresse social e questão ambiental, trabalhando a materialidade da lama para propor uma experiência política de estar no mundo.
Resumo expandido
- Buscamos nesse trabalho a comunicação entre o conceito yanomani de fuga das imagens e a geopoética da lama, para entender a riqueza expressiva da substância plástica da lama/barro para expressar a realidade brasileira. Partimos da capacidade da lama de, ao mesmo tempo, ser índice de várias consequências da crise ambiental e social (destruição de florestas e rios, alagamento, desmoronamento de encostas, falta de saneamento e asfalto, moradias em palafitas, genocídio de povos originários e ribeirinhos, etc.), desnaturalizando, assim, o racismo ambiental que as acompanha, além de apresentar a capacidade estética de propor reflexões, mudar sensibilidades, angariar consciências e instigar ações. Dessa forma a leitura de tal substância se torna ambivalente, partindo da negatividade de sua indicialidade e simbologia para encontrar a positividade de poder expressar resistências, memórias e mudanças. Na cinematografia, esse princípio estético pode se tornar uma possibilidade estética interessante para integrar um olhar político na expressão do real.
Ao denunciar a violenta crise ambiental trazida pelas máquinas do desenvolvimento, que transforma árvore em capim e rios em córregos lamacentos, Davi Kopenawa, seguindo o pensamento yanomani, relata que até as imagens dos bichos fogem enfurecidas para longe, dando à estética um importante papel regulador para a relação entre ser humano e natureza. Tal visão encontra a geopoética da lama quando alia, como esta, uma visão fenomenológica que rompe com o dualismo moderno ocidental entre ser humano e natureza para reavaliar a materialidade na lama como forma de vivência imanente e subjetiva. Nas imagens de um filme, tal conceito estético pode atuar como um ponto de tensão entre situação social e estresse ambiental, ultrapassando os limites da ilustração e do mero simbólico para propor uma experiência política de estar no mundo.
Para Kopenawa, a contemplação das imagens é, portanto, fundamental para se estabelecer o elo direto e ininterrupto entre ser humano e mundo. Na crise atual causada pela separação entre humano e natureza, Kopenawa lembra que a perda da essência de pertencimento com a natureza e o contato direto com nossos espaços é também a perda das imagens dos seres que compõem a essência do mundo, o que, de certa forma, desobjetifica o status da imagem, retirando-a de um estado de passividade:
“As imagens desses bichos, enfurecidas, fugiram para longe de lá, chamadas de volta pelos outros xapiri.”. (Kopenawa & Albert, 2015, p. 469)
Ao expressar o rompimento com essa cosmologia, a imagem cinematográfica encontra na lama de alagados e mangues rastros dessas imagens fugidias, assim como sinais dessa possível revolta e autonomia através da estética e sua expressões culturais, psicológicas e históricas. Ao abordar através de enquadramentos, volume, textura e luz a câmera expõe tanto sua vasta simbologia como a plasticidade de sua substância, a fotografia de filmes pôde encontrar a violência do subdesenvolvido buscado por Glauber Rocha (1965, p.1), como potência política do devir, amarrando política e estética ao se afastar do exotismo e do pitoresco.
Dessa forma, buscaremos aqui abordar a relação da riqueza semântica e plasticidade da geopoética da lama em contato com a visão dinâmica da tradição yanomami em relação à imagem e à contemplação, buscando compreender como essa mudança de leitura sobre a imagem imagem, nessa perspectiva autônoma e revoltada, pode acrescentar ao cinema uma força expressiva e criadora de significados. Portanto, buscamos também observar como o cinema pode traduzir, através da direção de fotografia, uma forma política e decolonial de retratar a complexidade brasileira a partir da potência criadora e transformadora da lama, diante da perspectiva dessa imagem-sujeito.
Bibliografia
- CASTRO, Josué de. (1967) Homens e Caranguejos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
COLLOT, Michel. (2013) Poética e filosofia da paisagem. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, E-book.
DUSSEL Enrique. (1993) 1492 – o encobrimento do outro: A origem do mito da modernidade. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: vozes.
Kopenawa, Davi; Albert, Bruce. (2015). A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. trad. Beatriz Perrone-Moisés. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.
Merleau-Ponty, Maurice. (1994) La Nature. Paris: Seuil.
ROCHA, G., Uma Estética da Fome, 1965. Vermelho (visto em 19/11/2023): https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/leia-a-integra-do-manifesto-uma-estetica-da-fome-de-glauber-rocha/
Filmes
Brasil S/A (Marcelo Pedroso, 2014)
Céu de Lua, Chão de Estrelas (SANTANA, Orun et SOARES, Camilo, 2022).
Febre do Rato (ASSIS, Cláudio, 2011).
Os homens do caranguejo ou a propósito de Livramento (PONTES, Ipojuca, 1968).
Recife de dentro pra Fora (MESEL, Katia, 1997).