Ficha do Proponente
Proponente
- Naira Evine Pereira Soares (UNEB)
Minicurrículo
- Doutoranda em Crítica Cultural (PósCrítica/UNEB), mestre em Cinema (PPGCine/UFF) e graduada em Rádio e TV (UESC). Documentarista, pesquisadora, montadora e curadora. Diretora do Pé de Mangue Audiovisual. Dedica sua pesquisa às memórias dentro do cinema negro brasileiro. Vive o cinema na teoria e na prática, contando histórias que ecoam ancestralidade e resistência.
Ficha do Trabalho
Título
- “Quem tem direito à memória familiar no cinema brasileiro?”
Resumo
- Através da apropriação do cinema por mãos e perspectivas negras, muitos temas passaram a sobressair, um deles são as memórias. Muitos filmes tem partido de questionamentos dentro de seus ambientes familiares e proposto diálogos coletivos. Parte-se do pressuposto de que memórias negras foram (e são) sistematicamente apagadas da história nacional, tornando-se uma lacuna coletiva. A pesquisa se fundamenta também em autores como Bamba (2008) Martins (2021), Sharpe (2023) e Hartman (2021).
Resumo expandido
- Este trabalho investiga como cineastas negros brasileiros, ao investigarem seus contextos familiares, acabam propondo diálogos coletivos em seus filmes. A pesquisa, desenvolvida no doutorado em Crítica Cultural (UNEB), parte do pressuposto de que memórias negras foram (e são) sistematicamente apagadas da história nacional, tornando-se uma lacuna coletiva. Nesse contexto, esses filmes extrapolam o individual e exploram a busca por origens, respostas e formas de resistência por meio de documentos, história oral, silêncio e apagamento. O estudo analisa como afetos, traumas, ruínas, dever de memória (Bamba, 2008) e cosmopercepção (Oyẹwùmí, 2021) estruturam essas narrativas, refletindo estratégias de preservação e (re)construção das memórias negras.
A busca por memórias apagadas está presente em diversas produções artísticas e acadêmicas. Hartman (2021) questiona: “como escrever uma história sobre um encontro com o nada?” (p. 25), enquanto Sharpe (2023) afirma: “há muitos silêncios na minha família” (p.10). Ambas evocam o desejo de resgatar um passado que resiste entre esquecimentos e silenciamentos, evidenciando as estratégias encontradas por famílias colonizadas para manter sua história viva. A oralidade é um elemento central na manutenção da memória coletiva, e, como argumenta Hampâté Bâ (2010, p.168), “o testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale o que vale o homem”. Ouvir e ser ouvido é um ato de pertencimento.
O “dever de memória” pode ser entendido de diferentes formas. Ricœur (2007) o define, sob uma perspectiva ocidental, como uma responsabilidade coletiva e constitucional, ligada à justiça: “o dever de memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não a si” (p.101). Bamba (2008) vai defender “como uma forma de se reapropriar da sua história”, tanto no continente africano quanto em comunidades afrodiaspóricas, ele se manifesta como um compromisso ético naturalizado, uma forma de respeito aos mais velhos e ancestrais. No Brasil, esse dever se choca com a ausência de registros e a fragmentação das histórias familiares. Quando Antonio Bispo, em entrevista à revista Revestrés, sugere que “quem não tiver avô, que peça emprestado os avós dos outros”, aponta uma solução comum entre negros periféricos, que recorrem à coletividade para reconstruir suas histórias.
Rosana Paulino, no episódio “Estéticas das Familiaridades” da série Ancestralidades, destaca a força das imagens na estruturação da subjetividade: “muitas coisas não precisam ser ditas, mas são vistas, colocadas para serem vistas, ou não colocadas”. A ausência de imagens de corpos negros na história oficial reforça o apagamento. Nesse sentido, a arte possibilita uma reconexão com o passado, permitindo que as pessoas se vejam e se reconheçam na história.
A pesquisadora Elizabeth Jelin (2002, p. 17) argumenta que “abordar a memória envolve referir-se a memórias e esquecimentos, narrativas e atos, silêncios e gestos. O conhecimento está em jogo, mas também existem emoções. E existem também buracos e fraturas”. Discutir memória é um caminho turvo, mas também libertador. Enquanto algumas memórias são esquecidas com o tempo, outras são deliberadamente apagadas, evidenciando a memória como uma questão política.
A memória, portanto, é uma ficção fundamental para indivíduos e comunidades, pois constrói identidades e fortalece a noção de pertencimento. No contexto brasileiro, refletir sobre memória significa necessariamente pensar em colonialidade. Dessa forma, este estudo busca compreender como o Cinema Negro Brasileiro contemporâneo tem lidado com essas questões, transformando silêncios e apagamentos em narrativas de resistência e reconstrução.
Bibliografia
- BAMBA, M. O dever da memória. Abidjan: Presses Universitaires, 2008.
BÂ, H. A. Amadou Hampaté Bâ: a tradição viva. Lisboa: Edições Pedago, 2010.
HARTMAN, S. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
MARTINS, Leda. Afrografias da memória: o reinado do Rosário do Jatobá. 2.ed. Belo Horizonte: Mazza Edições; São Paulo: Editora Perspectiva, 2021
OYEWUMI, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Tradução: wanderson flor do nascimento. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 1 ed., 2021.
SANTOS, Tiganá Santana Neves. A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2019.
SHARPE, C. In the wake: on Blackness and being. Durham: Duke University Press, 2023.