Ficha do Proponente
Proponente
- Felippe Schultz Mussel (PPGCA-UFF)
Minicurrículo
- Pesquisador, sonidista e realizador audiovisual. Mestre em Comunicação Social e doutorando em Estudos Contemporâneos das Artes (UFF), onde investiga as potências cosmopolíticas do som e da escuta no campo expandido da arte . Foi professor do curso de graduação em Estudos de Mídia da PUC-Rio (2019-2023). Atuou no departamento de som de mais 40 filmes brasileiros nos últimos 20 anos. Dirigiu o longa-documentário Em busca de um lugar comum (2014) e o curta-experimental Espectro Restauración (2022).
Ficha do Trabalho
Título
- Os sons que seguram o céu: anotações de trabalho em “A menina e o pote”
Seminário
- Histórias e tecnologias do som no audiovisual
Resumo
- Um memorial sobre o processo de construção da banda sonora da animação “A menina e o pote” (2024). Realizado através de uma técnica de pintura sobre vidro, o filme propõe um trabalho de desenho sonoro igualmente artesanal, guiado pelo desafio técnico e artístico de tentar dar conta do papel político e estético que o som e a escuta desempenham para muitos povos ameríndios da Amazônia, em especial para os Yanomani e os Baniwa, etnias nas quais a história narrada se inspira livremente.
Resumo expandido
- Apresentamos um memorial do processo criativo da banda sonora do curta-metragem de animação “A menina e o pote” (2024, dirigido por Valentina Homem e Tatiana Bond). Realizado a partir de uma técnica artesanal de pintura sobre vidro, o filme exigiu um trabalho de desenho de som igualmente experimental, tendo como um de seus principais desafios técnicos e artísticos a tentativa de dar conta do papel político e estético que a escuta desempenha nas cosmologias dos povos ameríndios da Amazônia, em especial para os Yanomani e os Baniwa, culturas nas quais a narrativa se inspira livremente.
Na animação, cuja história provém de um conto, e que também se desdobrou em uma peça teatral, acompanhamos a jornada de uma menina que, ao despertar em um mundo devastado e tomado por lama, encontra um pote de barro. Desolada, ela passa a esfregar insistentemente o pote, descobrindo não apenas o seu próprio reflexo na superfície de barro como ativando as propriedades acústicas do objeto. A menina então quebra o pote, rompendo com o mundo distópico no qual estava aprisionada. De forma ambivalente, seu gesto de destruição abre a brecha para a recriação do mundo, um mundo onde múltiplas formas de vida teriam lugar, um mundo-floresta. Em sintonia com as camadas visuais, com a materialidade das cores e texturas que pintam um novo mundo, a edição de som se encarrega das disputas em curso no campo acústico. Isso porque, em um dado momento, as sonoridades dos animais, das plantas, do vento, da terra e das águas, que pouco a pouco encontram seu lugar no processo cosmogônico em curso, são atravessadas pelos ruídos das máquinas, aviões, helicópteros, automóveis, telefones e toda sorte de sons de “mercadorias” que, como nos conta o xamã Davi Kopenawa, “obstruem o pensamento e limitam a dimensão dos sonhos”.
A partir de nossas anotações de trabalho, detalharemos como cada uma das etapas do desenho de som, com suas particularidades técnicas e conceituais, buscou desdobrar aquilo que afirmam algumas pesquisas etnográficas recentes: muitas cosmovisões ameríndias são, paradoxalmente, ancoradas na potência da escuta, se revelando verdadeiras cosmoaudições de mundo. Além das referências diretas a obras fundamentais como “A Queda do Céu” (2014), nossa elaboração do universo cosmogônicosda Amazônia indígena se deu graças ao trabalho em colaboração artística como Francy Baniwa – no roteiro, nas dublagens e na narração – e de Francisco Baniwa – responsável pelo toque das flautas sagradas do seu povo que soam no filme. Destacaremos ainda a construção dos ruídos de sala (foley), que exigiu a invenção de técnicas para manipulação de diferentes objetos de barro de modo a encontrar texturas, reverberações e ressonâncias específicas. Em certo ponto do filme, o som desempenha ainda uma função narrativas essencial para um propósito político do filme: fazendo uso de gravações de campo feitas na aldeia baniwa de Francy e Francisco, na região do Alto Rio Negro, a banda sonora se descola do universo mítico e onírico que vemos na imagem, aproximando o filme do presente da Amazônia, daquilo que de mítico existe em um grupo de crianças brincado na beira do rio Içana. “Escuto a memória de tudo aquilo que já fui”, diz narradora em certo ponto.
Parte de uma pesquisa teórica e prática em andamento, esta comunicação tem por objetivo contribuir para os debates sobre como nossas práticas audiovisuais podem se contaminar, interagir, ou mesmo almejar traduzir outras áudio-visões de mundo distintas das culturas hegemônicas ocidentais. Contaminações que não se resumem a representação ou a representatividade de outros povos pelo cinema, mas demandam um tensionamento da própria linguagem cinematográfica cânomica. Para além, almejamos com este memorial destacar a importância de perspectivas práticas para a pesquisa em cinema, sobretudo para os Estudos de Som, onde a artesania e na experimentação figuram como estratégias fundamentais para abertura do campo a outros saberes e modos de fazer.
Bibliografia
- ALBERT, Bruce. KOPENAWA, Davi. O Espírito da Floresta. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
BANIWA, Francy; BANIWA, Francisco. Umbigo do mundo. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2023
DE TUGNY, R. P. “Modos de escutar ou: como colher o canto das árvores?”. Música e Educação – Série Diálogos com o Som: Ensaios; v.2. Org: Helena Lopes da Silva e José Antônio Baeta Zille. Barbacena: Ed. UEMG, 2015.
KOPENAWA, Davi. ALBERT, Bruce. A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomani. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
TABORDA, Tato. Ressonâncias: vibrações por simpatia e frequências de insurgência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2021.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companheira das Letras, 2017.