Ficha do Proponente
Proponente
- Marcia Antabi (PUC-Rio)
Minicurrículo
- Marcia Antabi é professora de edição e montagem em cinema e audiovisual da PUC-Rio, há 24 anos. Doutora em Comunicação pela PUC-Rio. Mestre em Fotografia e Mídias pela School of Visual Arts de Nova Iorque. Diretora premiada, editora de produtos audiovisuais, fotógrafa e jornalista. Em 2024, publicou o livro “O Cinema Yiddish: um passaporte para a cultura (Numa Editora). É integrante do grupo Viver com Yiddish da PUC-Rio: pesquisas, cursos e projetos culturais.
Ficha do Trabalho
Título
- “Um Dia em Varsóvia”: os arquivos Goskind e o cinema-passaporte
Resumo
- O cinema yiddish não é mencionado na bibliografia brasileira sobre a História do Cinema Mundial. No contexto internacional, é mencionado apenas de forma breve. O que é o cinema yiddish? Quem foram as pessoas que atuavam no contexto dessa cinematografia? Quem eram os espectadores destes filmes? Onde e como acessar esses filmes hoje? Qual é o significado de olharmos hoje para “Um Dia em Varsóvia” (Saul e Yitzhak Goskind, 1939), tal qual mediador de conhecimento entre o passado e o presente?
Resumo expandido
- Entre 1938 e 1939, alguns meses antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, a dupla de irmãos produtores de cinema Saul e Yitzhak Goskind filmou seis curtas-metragens que retratam as comunidades judaicas nas mais populosas cidades polonesas. São documentos raros, que representam os últimos registros fílmicos da existência judaica na Polônia antes das invasões alemã e soviética.
Por puro acaso, cinco destes curtas-metragens sobreviveram à guerra. O pacote com a versão final das películas foi enviado à Nova Iorque pelos produtores alguns dias antes do início da Segunda Guerra Mundial, “mas ninguém veio buscá-lo. Estas produções permaneceram esquecidas nos correios até 1942. Quem postou Um Dia em Varsóvia na repartição polonesa e quem deveria encontrar o filme no correio em Nova Iorque anos depois e não apareceu? Por que ficou tanto tempo esquecido? Como foi descoberto? Sabemos que esta película foi leiloada, mas quando e onde ocorreu o leilão? Quanto pagou? O correio serviu de abrigo para um passaporte extraviado, em seguida encontrado e que representa hoje um rastro da pulsação da rotina da yiddishe gas (a rua judaica).
Mais de oitenta anos depois, cada uma destas montagens, com cerca de dez minutos de duração, despertam o interesse e o exercício de imaginar. Trata-se aqui de colocar em evidência o gesto de produzir cinema como um mecanismo de escritura da própria história e das várias interpretações que a montagem oferece.
Os irmãos e produtores de cinema Saul e Yitzhak Goskind são personagens fundamentais no desenvolvimento da cinematografia yiddish na Polônia. Como precursores do cinema falado em yiddish, eles tomaram uma posição de resistência diante de várias tentativas de impedimento da produção e da exibição de filmes judaicos em Varsóvia na década de 1930. Desse modo, por que eles não aparecem nas buscas dos arquivos nacionais do cinema na Polônia, nem tampouco nos livros de história do cinema mundial sobre os diretores produtores do cinema?
O curta-metragem Um Dia em Varsóvia (1939) interessa especificamente por evidenciar a vida na capital da indústria cinematográfica polonesa na década de 1930. Em Varsóvia, quase toda a engrenagem da produção do cinema era organizada e gerenciada por empresários de ascendência judaica, assim como os principais atores do teatro e do cinema. Um Dia em Varsóvia exibe claramente a vida judaica efervescente na capital polonesa, a cultura, os hábitos, os valores e o dia a dia dos judeus antes da guerra. O destaque dado ao curta-metragem é justamente pela produção do filme na iminência da devastação, pois os vestígios sobre a vida cotidiana são derradeiros.
Estes arquivos nos mostram a vida habitual dos grupos judaicos no momento em que a câmera dos Goskind filmava sem saber as pessoas e os lugares que se tornariam destroços a partir de 1940. O que dizem estas vozes e sobre o que elas conversam? A respeito de que realidade estas imagens nos informam? O cinema, como um testemunho de um determinado tempo, tem a potência de mostrar, de devolver estas vozes. Ao dialogar com as experiências tanto pessoais quanto de um grupo, ele nos ensina como é difícil a compreensão de um contexto político e social do presente.
A trajetória de Um Dia em Varsóvia é repleta de lacunas. Ao enviar estes filmes para Nova Iorque, os Goskind não somente devolveram as imagens do cotidiano judaico como estabeleceram possibilidades de uma relação das imagens e das vozes com o futuro. É um filme esquecido, anos depois desenterrado, mas que permanece desconhecido no Brasil.
O resgate de Um Dia em Varsóvia e dos outros quatro curtas-metragens recuperados que revelam o movimento das comunidades judaicas das cidades da Polônia é, de fato, um passaporte que nos faz percorrer, pelo fio das imagens, a dobradiça entre um mundo e outro, entre uma temporalidade e outra, entre um espaço e outro, entre uma língua e outra. Deste modo, o conceito de passaporte coabita o passado e o futuro.
Bibliografia
- COMOLLI, Jean-Louis. A última Dança: como ser espectador de Memory of the
Camps. Transcrição e Trad.: João Paulo Dumans. In: Devires, Belo Horizonte, v.
3, n. 1, p. 8-45, jan-dez., 2006.
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. 16. ed. Trad.:
Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. (Conexões 11)
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as Imagens tomam Posição: o olho da
história, I. Trad.: Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2017.
DULIK, L.; ZIELINSKI, K. The Lost World: Polish Jews, photographs from 1918
– 1939. Trad.: Wieslaw Horabik e Andrej Trzcinski. The Jewish Historical Institute, Varsóvia: Boni Libri, 2015.
FARGE, Arlette. O Sabor do Arquivo. Trad.: Fátima Murad. São Paulo: Editora
Universidade de São Paulo, 2009.
GREIF, Gideon. Six Cities. Yad Vashem. 1999.
SKAFF, Sheila. The Law of the Looking Glass: Cinema in Poland, 1896 – 1939.
Ohio University Press, 2008.