Ficha do Proponente
Proponente
- Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro (UFBA)
Minicurrículo
- Entropólogo da disseminação de mundos, Marcelo R. S. Ribeiro é professor de cinema-delírio na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Autor do livro Do inimaginável (Editora UFG, 2019), escreve no incinerrante.com e coordena o grupo (an)arqueologias do sensível (gas.ufba.br), desenvolvendo e orientando pesquisas sobre imagem, história e direitos humanos, cinemas africanos, história do cinema, arquivos e descolonização.
Ficha do Trabalho
Título
- O espectro do anarquívico
Resumo
- Em diálogo com teorias do arquivo que interrogam suas dimensões políticas, apresento três teses para uma teoria estética do anarquívico. Na primeira discuto a materialidade anarquívica como processo de desintegração e destruição gradual dos suportes de inscrição. Na segunda caracterizo como uma violência anarquívica o princípio de seleção e classificação que funda todo arquivo. Na terceira analiso gestos de remontagem anarquívica como confrontação crítica e poética dos arquivos e suas lacunas.
Resumo expandido
- Diversas teorias do arquivo interrogam suas dimensões políticas, seja enfatizando suas relações com o Estado e diversas instituições investidas de autoridade pública ou reconhecimento social, seja destacando seus modos de constituição e legitimação da memória coletiva e da história (Mbembe, 2002; Trouillot, 2016). As dimensões políticas do arquivo são inseparáveis, por sua vez, de sua dimensão epistemológica, relacionada tanto à reunião e à organização de materiais diversos em ordens classificatórias, quanto às condições de possibilidade históricas e técnicas de aparição e circulação de registros, documentos e rastros arquiváveis (Derrida, 2001; Foucault, 2008).
Ao considerar as dimensões políticas e epistemológicas dos arquivos, emerge recorrentemente (em uma espécie de negativo revelador) um problema multifacetado: as lacunas, as ausências, as exclusões – em suma, o que venho chamando de anarquívico, entendido como uma designação conceitual aberta que aponta para os diferentes modos de inexistência que constituem, habitam e assombram os arquivos: o que foi descartado, o que se perdeu, o que foi destruído, o que desapareceu etc. Considerando essas questões a partir de exemplos pertinentes aos estudos de cinema e audiovisual, nesta comunicação apresento e elaboro três teses para uma teoria estética do anarquívico.
Em vez de aspirar à enumeração exaustiva dos modos de inexistência dos arquivos (o que seria impossível), proponho uma deriva experimental pelo espectro do anarquívico, insinuando a diferenciação entre três de suas aparições. Na primeira tese, discuto a materialidade anarquívica como processo de desintegração e destruição gradual dos suportes de inscrição. Aqui, o espectro do anarquívico aparece como a entropia da desintegração material, associada à destruição gradual dos suportes de inscrição, em suas diversas condições de durabilidade. A materialidade anarquívica (Smith; Hennessy, 2020) é a condição que torna necessário institucionalizar a preservação e a restauração como práticas baseadas em protocolos técnicos estabelecidos e controlados.
Na segunda tese, caracterizo o princípio de seleção e classificação que funda todo arquivo como uma violência anarquívica. Aqui, o espectro do anarquívico aparece como a violência da exclusão e da consequente destruição de matéria informacional, em um processo de seleção e organização que torna possível que exista algum arquivo, ao mesmo tempo em que necessariamente implica a parcialidade e a incompletude de todo arquivamento. “O arquivo começa pela seleção, e essa seleção é uma violência”, como afirma Derrida (2012, p. 130), e esta é a condição que torna necessário institucionalizar princípios de inclusão e exclusão, com base em critérios técnicos e políticos variáveis que fundamentam o reconhecimento, a atribuição de valor, a identificação e a caracterização de registros, documentos e rastros.
Na terceira tese, aponto gestos de remontagem anarquívica como confrontação crítica e inventiva dos arquivos e de suas lacunas. Aqui, o espectro do anarquívico aparece como uma abertura da possibilidade de redistribuição da ordem classificatória da matéria informacional, assim como de seus correspondentes negativos: desde o excluído e o inclassificável, de um lado, até o destruído e o imaterial, de outro. Toda uma série de gestos de “anarquivamento” (Seligmann-Silva, 2023) parte de algum acesso à matéria informacional classificada no interior do arquivo, assim como do reconhecimento de suas lacunas e incompletudes, para reinventar seus sentidos, revelando, como parte do que Hal Foster (2004) chamou de “impulso arquivístico” na arte contemporânea (Beiguelman, 2019), um intenso “impulso anarquivístico” (Sá, 2017) e todo o amplo horizonte do “anarquivismo” (Tello, 2018).
Bibliografia
- DERRIDA, J. Rastro e arquivo, imagem e arte. In: MASÓ, J.; VILA, J. B.; MICHAUD, G. (org.). Pensar em não ver. Florianópolis: EdUFSC, 2012.
FOSTER, H. An Archival Impulse. October, v. 110, p. 3–22, 2004.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
MBEMBE, A. The Power of the Archive and its Limits. In: HAMILTON, C. et al. (org.). Refiguring the Archive. Dordrecht: Springer Netherlands, 2002.
SÁ, G. af ec tos l l lacu nar e s: um estudo acerca da poética do arquivo e do impulso anarquivístico. 2017. 159 f. Dissertação de mestrado – UFMG, Belo Horizonte, 2017.
SELIGMANN-SILVA, M. Acerca do Anarquivamento. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. Walter Benjamin e a guerra de imagens. São Paulo: Perspectiva, 2023.
SMITH, T. L.; HENNESSY, K. Anarchival Materiality in Film Archives: Toward an Anthropology of the Multimodal. Visual Anthropology Review, v. 36, n. 1, p. 113–136, 2020.
TELLO, A. Anarchivismo: tecnologías políticas del archivo. Adrogué: La Cebra, 2018.