Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Adérito Schneider Alencar e Távora (IFG)

Minicurrículo

    Adérito Schneider é professor e pesquisador de Cinema e Audiovisual do IFG – Cidade de Goiás, onde coordena o Gruñido – Grupo de Pesquisa em Narrativas Insólitas. Doutor em História pela UFG. Autor das obras (insólitas): O rastro da lesma no fio da navalha (Patuá, 2022) e as antologias Cidade sombria (Ideia de Girino / MMArte, 2018) e Cidade infundada (Ideia de Girino, martelo casa editorial 2022).

Ficha do Trabalho

Título

    ‘O lodo’ de Murilo Rubião e a adaptação de Helvécio Ratton: o neofantástico de fonte kafkiana

Seminário

    Estudos do Insólito e do Horror no Audiovisual

Resumo

    O lodo é um conto neofantástico de Murilo Rubião influenciado pela obra de Franz Kafka (em especial, O processo e A metamorfose). Adaptado para o cinema por Helvecio Ratton (que assina o roteiro com L.G. Bayão), o filme homônimo traz elementos kafkianos presentes no conto, mas também bebe na fonte kafkiana para apresentar elementos inéditos. Assim, a proposta do artigo é comparar o conto (original) e o filme (adaptação) em diálogo com a obra kafkiana sob a luz dos teóricos do (neo)fantástico.

Resumo expandido

    Murilo Rubião é um dos principais autores da literatura brasileira e sua obra é de difícil classificação, sendo rotulada ora como realismo-maravilhoso (ou realismo-mágico ou, ainda, realismo-fantástico), ora como (neo)fantástico. Seu conto “O lodo” narra a história de Galateu, atuário de uma companhia de seguros, que, vitimado por uma “depressão ocasional” (RUBIÃO, 2010, p.67), acaba procurando tratamento na clínica do Dr. Pink, que o obriga a se deitar em um divã. O paciente recusa o tratamento e, apesar disso, vê-se enredado numa armadilha de coerção que vai de telefonemas indesejados, perseguições públicas e até mesmo visitas domiciliares do Dr. Pink, culminando em um processo judicial por uma dívida referente a sessões psicanalíticas recusadas e não realizadas (a referência a O processo, de Franz Kafka, não pode ser ignorada).
    Os ares de inverossimilhança da coerção insistente (e a extorsão financeira) do Dr. Pink, já nos primeiros parágrafos, inserem o conto de Rubião no campo das narrativas insólitas, mais especificamente no neofantástico, pois é um caso em que, segundo David Roas, “a anormalidade inserida na própria ordem do real por meio de imperceptíveis alterações que transformam, de repente, o normal e familiar em inquietante instabilidade” (2014, p.18). Porém, o insólito se intensifica e culmina no sobrenatural quando, depois de uma noite de sonhos inquietantes, o protagonista acorda com um dos mamilos metamorfoseado em “uma ferida sangrenta, aberta em pétalas escarlates” (RUBIÃO, 2010, p.69). Depois, são os dois mamilos feridos, sem que exista explicação física ou biológica para o ocorrido. Com a piora gradativa do quadro, o personagem vai apodrecendo, ganhando contornos animalescos e chega a rastejar no chão (a referência à A metamorfose, de Franz Kafka, não pode ser ignorada).
    Assim como na novela do autor tcheco, quem passa a cuidar do metamorfoseado Galateu é sua irmã. Porém, aqui, a “Bruxa” (RUBIÃO, 2010, p.73) (Epsila) é uma visita não desejada que ele não consegue impedir de entrar em sua residência e que toma controle da situação após demitir a empregada doméstica (mais uma vez, semelhança com A metamorfose) e impedir a entrada do farmacêutico que o tratava informalmente. Além disso, a irmã está acompanhada do filho, “um menino com aparência de retardado mental” (RUBIÃO, 2010, p.72), um “debiloide” (RUBIÃO, 2010, p.72) fruto de um relacionamento incestuoso entre os dois, ou seja, um passado recalcado (o lodo de seu inconsciente) que invade o presente, o infamiliar freudiano.
    Em A metamorfose, há uma (não sexualmente concretizada) relação incestuosa entre os irmãos Grete e Gregor Samsa, mas o tratamento que Murilo Rubião dá ao tema é bem diferente de Franz Kafka (como se avançasse para onde o autor tcheco não ousou, criando uma atmosfera mais rodriguiana). Além disso, a forma como essa relação se manifesta no filme de Helvécio Ratton (que assina o roteiro com L.G. Bayão), ainda que o filme seja bastante fiel às premissas básicas do enredo do conto literário, também diverge em relação à obra de Rubião. Por exemplo, no conto “O lodo”, há pouca descrição do espaço cênico. Dessa forma, o filme homônimo, que traz revistas Playboy e um quadro de uma jovem nua decorando o quarto do protagonista, parece se inspirar na fonte de A metamorfose para compor esse cenário. Em relação à panóptica clínica de Dr. Pink, com suas câmeras, portões eletrônicos e torres com janelas, a referência parece ser Michel Foucault.
    Assim, oscilando entre realismo (ou verossimilhança), memória, sonho (ou pesadelo) e delírio, o filme de Ratton parece resultar de uma espécie de triangulação entre uma obra autoral, a adaptação do conto literário de Rubião e uma dupla camada de influência kafkiana. Portanto, a proposta deste artigo é analisar essa obra cinematográfica em diálogo com as citadas obras literárias para compreender de que forma esse jogo se estabelece e como ele se concretiza a partir da linguagem cinematográfica.

Bibliografia

    CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Cezar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.
    FREUD, Sigmund. O infamiliar. Tradução de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
    FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petropólis, RJ: Vozes, 2013.
    FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
    KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2010.
    KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
    ROAS, David. A ameaça do fantástico. Aproximações teóricas. Tradução de Julián Fuks. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
    RUBIÃO, Murilo. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
    TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castelo. São Paulo: Perspectiva, 2017.