Ficha do Proponente
Proponente
- Paul Newman dos Santos (IAU-USP)
Minicurrículo
- Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela USP (IAU-USP), com dupla titulação pela Universidad de Sevilla (US). Pesquisa relações entre cinema e espaço urbano, investigando filmes como mediadores críticos de urbanidades contemporâneas, atualmente com ênfase no vínculo entre lentidão e vida cotidiana. Mestre pelo IAU-USP, com estudo sobre imaginários urbanos no cinema brasileiro contemporâneo. Integrante do Núcleo de Pesquisa em Estudos de Linguagem em Arquitetura e Cidade (N.ELAC).
Ficha do Trabalho
Título
- Corpo, desorientação e urbanidade: a errância no cinema contemporâneo como metáfora do viver urbano
Resumo
- Filmes como O Homem das Multidões (2013) e Xiao Wu (1997) revelam personagens cujo deslocamento evidencia a desconexão entre indivíduo e ambiente. Argumenta-se que ao fixar-se em corpos errantes, o cinema realista contemporâneo convida o espectador a pensar sobre a cidade em escalas múltiplas. Aqui o deslocamento físico-simbólico registrado articula-se à desorientação, mercantilização da vida e alienação da experiência urbana, expondo o conflito entre subjetividades e temporalidades hegemônicas.
Resumo expandido
- Propõe-se uma reflexão sobre a representação da errância no cinema contemporâneo como metáfora da desorientação do sujeito no espaço urbano, mediada por filmes que incorporam o deslocamento como marcador temporal da narrativa. A partir de O Homem das Multidões (Cao Guimarães e Pablo Lobato, 2013) e Xiao Wu (Jia Zhangke, 1997), discute-se como a errância de corpos em movimento tensionam as percepções das temporalidades do habitar, usando escalas do real para criar artefatos ficcionais que dialogam com o viver citadino.
Em O Homem das Multidões, acompanha-se a trajetória de um motorista de trem em seu cotidiano solitário. Ele conduz outros em percursos pré-determinados, enquanto seu próprio corpo deriva aparentemente sem rumo entre espaços, multidões e sentidos. Já Xiao Wu nos apresenta um ladrão de carteiras a regressar para sua cidade natal. O protagonista vaga entre lugares e memórias, enquanto seus laços sociais se desfazem em uma desconexão entre seu corpo e o espaço em transformação que ele transita.
Em ambos, apesar das diferenças de contextos urbanos, pautam-se sujeitos deslocados, cuja existência parece se definir pelo vagueio contínuo de seus corpos. Nesse contexto, a errância se alinha à visão de Jacques (2012) como um fenômeno contemporâneo que, ainda que por vezes imposto, não se limita ao movimento físico, mas reflete uma desorientação diante de um espaço urbano marcado pela aceleração, fragmentação e mercantilização da vida cotidiana.
Rosa (2016) e Lefebvre (2001) nos dão argumentos para pensar tal condição de como a modernidade tardia impõe uma aceleração que aliena o sujeito de sua experiência urbana. Observa-se como a lógica do capital subordina a vida diária, transformando a cidade em produto mercantilizado. Assumimos, nisso, que o cinema absorve esse debate em sua essência. Os filmes mapeiam escalas do real por meio do vagar de corpos em territórios urbanos, consolidando a errância como metáfora do conflito entre tempos e espaços. Isso, pois, a câmera captura fundamentalmente o descompasso entre o urbano e a subjetividade daquele que não se reconhece naquele território. O vagar assume, portanto, um sintoma de uma desorientação mais profunda — a do sujeito que se move deslocado das temporalidades e espacialidades hegemônicas.
Evidentemente há, num movimento transnacional, um contexto histórico e estético ao qual tais filmes se alinham. Integram uma série de cinemas realistas que compartilham estratégias para ampliar a experiência da contemplação, absorvendo dimensões do real para tensionar a percepção do espectador (Nagib, 2020; Luca, 2015). Essa abordagem dialoga com Deleuze (2005) e Bazin (1991), que contribuem para pensar a narrativa cinematográfica como experiência temporal e espacial, onde o tempo se dilata e se torna duração. O registro lentificado do deslocamento, nos filmes, não é mera estilização. É um gesto de construção de um imaginário que visa reproduzir a integridade do espaço-tempo real — em suas demoras, esperas e lacunas — e acaba por resgatar a dimensão sensível da experiência urbana.
Assim, entendemos que a escolha por tomadas prolongadas do caminhar em O Homem das Multidões e Xiao Wu dilatam o tempo, mapeiam movimentos e revelam camadas de subjetividade, de modo que, a partir da errância, assumem um tom de desorientação, lentidão e ruptura. Nota-se que a atenção prolongada a um corpo em movimento não apenas
resgata temporalidades reais, mas cria um local onde a arte se faz relacional. Ou seja, absorve-se a desorientação do sujeito urbano contemporâneo e projeta-se, no espectador, como uma mirada sobre o viver. A errância, nisso, assume uma dimensão dupla num jogo de visualidades: entre personagem e espaço fílmico; e entre olhar do espectador e espaço observado. Portanto, esse cinema emerge como dispositivo crítico que propõe repensar as relações entre sujeitos e as múltiplas camadas das cidades vividas, representadas e percebidas num vínculo entre corpos, olhares e movimentos.
Bibliografia
- BAZIN, André. O cinema. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
DELEUZE, Gilles. Cinema 2: a imagem-tempo. Tradução de Eloisa do Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005.
JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos Errantes. Salvador: Edufba, 2012.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001.
LUCA, Tiago De. Realismo dos sentidos: uma tendência no cinema mundial contemporâneo. In: MELLO, Cecília (org.). Realismo Fantasmagórico. São Paulo: São Paulo: Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária – USP, 2015.
NAGIB, Lúcia. Realist cinema as World Cinema: Non-cinema, Intermedial Passages, Total Cinema. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2020.
ROSA, Hartmut. Alienación y aceleración: Hacia uma teoría crítica de la temporalidad en la modernidad tardía. Buenos Aires: Katz Editores, 2016.