Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Tiago José Lemos Monteiro (IFRJ)

Minicurrículo

    TIAGO JOSÉ LEMOS MONTEIRO é Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. Professor Efetivo do Bacharelado em Produção Cultural e da Especialização em Linguagens Artísticas, Cultura e Educação do Instituto Federal do Rio de Janeiro – Campus Nilópolis. Suas áreas de interesse giram em torno do insólito e do horror na cultura das mídias, cinema de gênero popular-massivo, exploitation e demais manifestações às bordas dos cânones audiovisuais.

Ficha do Trabalho

Título

    “A filha do demônio” (1997) e o ovo da serpente: política, mídia e religião

Seminário

    Estudos do Insólito e do Horror no Audiovisual

Resumo

    A filha do demônio é uma minissérie exibida pela Rede Record de Televisão em 1997. Por um lado, sua trama reverbera aquilo que identifico como um “terceiro ciclo” do filão satânico coincidente com a atmosfera de ansiedade global pré-virada do milênio. Por outro, trinta anos depois, a obra pode ser reenquadrada como uma espécie de “ponto zero” de um projeto de poder político, religioso e midiático encampado por setores conservadores e articulado em torno da Igreja Universal do Reino de Deus.

Resumo expandido

    O anseio global ante uma possível reencarnação do Anticristo e/ou manifestações demoníacas sob a forma de possessão pode ser agrupado em torno de três grandes ciclos audiovisuais: o primeiro, e talvez mais célebre no que se refere tanto ao estatuto quase canônico das obras produzidos quanto do extenso volume de títulos que gerou, compreende o arco entre 1968 (data de lançamento de Rosemary’s baby) e 1976 (quando chega às telas The Omen), também englobando o fenômeno de The exorcist e seus incontáveis derivados/similares. O segundo ciclo data de meados dos anos 1980, e teve nas reverberações junto à imprensa da época a sua faceta mais visível, como um sintoma daquilo que ficou conhecido como satanic panic – equação sensacionalista que articulava heavy metal, role playing games, tabuleiros ouija e ócio juvenil como evidências de uma suposta conspiração demoníaca para corromper as mentes inocentes. O output audiovisual deste segundo ciclo está longe de deter a mesma legitimidade da década anterior, dele fazendo parte longas-metragens como Trick or Treat (1986), The believers (1987), Spellbinder (1988) e Atração satânica (1989)- este último, dirigido pelo paulistano Fauzi Mansur, ainda que falado em língua inglesa.
    O terceiro ciclo coincide com a chegada do terceiro milênio e o temor acerca do cumprimento de antigas profecias que previam o final dos tempos e a segunda vinda de Cristo, antecedida por um breve reinado de seu maior opositor. Após um lustro praticamente ausente das telas, o Demônio regressa à ordem do dia em filmes como The Devil’s Advocate (1997), End of days (1999), Lost souls (2000) e a franquia The Prophecy (1995/1998/2000/2005). No Brasil, cujo legado histórico do catolicismo curiosamente parece ter freado representações mais frontais do Demônio e suas hordes pelo audiovisual, foi pelas mãos de uma emissora de TV aberta vinculada de forma explícita a uma instituição religiosa protestante neo-pentecostal – respectivamente, a Rede Record de Televisão e a Igreja Universal do Reino de Deus – que surgiu a contribuição mais instigante a este filão.
    Homem em sérias dificuldades financeiras vende a alma de sua filha para o Demônio, em troca de uma quantia exorbitante de dinheiro que o permite desfrutar de uma vida de excessos. Quinze anos depois, a (agora) jovem se sente deslocada de seus pares, ao mesmo tempo em que lamenta a ausência da mãe e o afastamento do pai, enveredando pelo caminho do vício em entorpecentes e do sexo desregrado. Ao descobrir detalhes sobre seu passado, encontra uma derradeira oportunidade de redenção. Esta é a sinopse de A filha do demônio, minissérie em cinco episódios levada ao ar pela Record entre 3 e 7 de março de 1997.
    Escrita por Ronaldo Ciambroni e dirigida por Atílio Riccó, a obra detém o (questionável) mérito de assinalar o retorno da emissora ao setor de teledramaturgia após um hiato de duas décadas. Virtualmente ignorada à época de seu lançamento, sendo inclusive tratada de forma jocosa pelos poucos críticos que se dispuseram a assisti-la, cerca de 30 anos depois é possível reenquadrar A filha do demônio sob outro prisma: como a gênese de um projeto de poder que, ao longo dos anos 2000 e 2010, teria desdobramentos nos campos político, econômico e sociocultural do país.
    Neste sentido, podemos tecer uma trama que conecta a incursão dramatúrgica da Record pelas searas do satanismo feita em 1997 a episódios recentes da história do Brasil, como o fortalecimento de setores conservadores no que diz respeito a certas pautas sociais, culturais e identitárias; a proliferação de denominações religiosas neo-pentescostais frente a um recuo da centralidade do catolicismo; e mesmo a disputa pela hegemonia no terreno televisivo, midiático e audiovisual, outrora dominado pela Rede Globo e que, hoje, encontra na Record e suas novelas bíblico-religiosas uma significativa concorrência em termos de público.

Bibliografia

    BARBIERI, Rafaela Arienti. God help you when the devil wants you: uma história social do horror satânico no cinema estadunidense. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2024.
    CASTRO, Daniel. Rede Record adota padrão ‘trash’ em “A filha do demônio”. Folha de São Paulo, 02 mar. 1997. TV Folha, s/p. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/tvfolha/tv020306.htm. Acesso em 24 mar. 2025.
    COWAN, Douglas E. Sacred terror: religion and horror on the silver screen. Waco, Texas: Baylor University Press, 2008.
    JANISSE, Kier-La; CORUPE, Paul (orgs). Satanic panic: pop-cultural paranoia in the 1980s. Toronto, Ontario: Spectacular Optical, 2015.
    MILLER, Cynthia J.; VAN RIPER, A. Bowdoin (orgs.). Divine horror: essays on the cinematic battle between the sacred and the diabolical. Jefferson, North Carolina: McFarland & Co., 2017.
    SCHRECK, Nikolas. The Satanic Screen: an illustrated history of the Devil in cinema 1896-1999. London: Creation Books, 2001.