Trabalhos aprovados 2025

Ficha do Proponente

Proponente

    Irene de Araújo Machado (USP)

Minicurrículo

    Professora Titular do Departamento de Comunicações e Artes (ECA-USP). Atua nos PPGs USP: Meios e Processos Audiovisuais e Estética e História da Arte. Desenvolve pesquisas, publica artigos e orienta trabalhos no campo da Semiótica da Cultura Audiovisual e das Experiências Estéticas da Performance. Em seu projeto atual como Bolsista Produtividade em Pesquisa (CNPq-PQ-1C) investiga o tema: Tradução Intercultural: Imprevisibilidades do Cinema Negro.

Ficha do Trabalho

Título

    Irreverência dos corpos pretos especulativos ante a tirania da luz branca

Resumo

    Orientando-se pela noção de “corpos especulativos” que Saidyia Hartman formula para escrever a contra-história dos povos disaspóricos, o presente estudo examina os contra-discursos produzidos pelo ato de filmar peles pretas fora da lógica da luz baseada na pele branca. Enquanto os padrões de exclusão denunciam atitudes de racialidade, oc contra-discursos audiovisuais põe em relevo a textura e a rugosidade das peles pretas, modelizando novos repertórios crítico-analítico da história única.

Resumo expandido

    Quando Saidyia Hartman formulou a concepção de “corpos especulativos” para “narrar a contra-História da escravidão, sua proposta era “iluminar a intimidade da nossa experiência com as vidas dos mortos”; “escrever nosso agora enquanto ele é interrompido por esse passado”; e “imaginar um estado livre, não como o tempo antes do cativeiro ou da escravidão, mas como o antecipado futuro dessa escrita” (Hartman, 2020, p. 17).
    O presente estudo guarda um interesse comum com Hartman ao se voltar para os contra-discursos que contribuem para fomentar as fabulações e imaginários capazes de insurgir contra narrativas oficiais (e oficiosas). Presume-se que não estivera no horizonte da ensaísta examinar como os contra-discursos enunciadores de uma contra-História pudessem manifestar-se na materialidade dos discursos do cinema. Contudo, tal é a ambição de nosso estudo. Examinamos como processos de iluminação das peles pretas converteram-se em obstáculo para o ato de filmar alheio às irreverências dos corpos pretos especulativos que desafiam os padrões de fotossensibilidade que negam sua condição de sensibilidade à luz. Irreverência que considera a pele preta como potência sensorial que não se limita a padrão de cor, mas cujas texturas convidam para experimentação de recursos capazes de revelar diferentes ondas de luminosidade e de rugosidade do corpo preto, ou seja, das marcas encarnadas do passado que permanecem na “paisagem” do corpo construída pelo tempo, como aprendemos com Milton Santos (2012, p. 140).
    Desafiando o sentimento generalizado de “ser um problema”, de “enxergar a si mesmo pelos olhos dos outros”, diferentes produções de cinemas negros substituem as lentes dos “olhos dos outros” pelo olhar para si mesmo com a visão e consciência que a pele preta com sua corporeidade. Trata-se de alcançar a dimensão política dos corpos pretos especulativos em corporeidades sensíveis existindo num mundo anti-negritude para, assim, examinar os novos repertórios de imagens, de discursos e de modelos interpretativos que questionem a herança discriminatória do projeto colonial de subjugação dos povos pretos (Nascimento, 2022, p. 45).
    Contra a estereotipia tem sido praticada em estudos a reflexão crítica do padrão de luminosidade que reforça comportamentos raciais, o estudo da irreverência dos corpos pretos especulativos se coloca na extensão dos estudos históricos e culturais, mas dele se distinguindo por concentrar sua abordagem na construção estésica do ato de filmar gentes pretas à revelia do padrão luminoso que ignorou sua existência. Com isso, as audiovisuailidades dos corpos especulativos obrigam os códigos a enunciar contra-discursos apontando controvérsias e dissensos da lógica dominante sob a tirania da luz branca. Recorrendo novamente a Bamba e Meleiro e seus estudos sobre os cinemas africanos, entendemos que os cinemas negros
    “[…] apesar de serem produtos culturais com traços idiossincráticos marcados, são também objetos estéticos e semióticos. São textos que podem ser usados, lidos, estudados, reapropriados pelos diversos públicos cinematográficos com vista nos seus particularismos culturais ou atentando para suas ousadias formais.” (Bamba; Meleiro, 2012, p. 9).

    A abordagem tripartite apresenta: (i) questionamento da lógica fundada na racionalidade da luz branca e do repertório de imagens tomado como valor racial; (ii) análise crítica do pressuposto que nega a fotossensibilidade da pele preta e sua condição de geração de jogos de luz e de contrastes; (iii) exame do discurso contra-hegemônico que qualifica as estesias audiovisuais dos corpos pretos. Espera-se, assim, sistematizar procedimentos estésicos das diferentes vibrações de experiências sensíveis criadoras de cinegrafias da luz em filmes pretos, modelizando novos repertórios crítico-analítico de uma história de dissensos e do que dela permanece irredutível às artimanhas da exclusão que insistem em ignorar os seres que se vestem de luz (Oliveira, 2016, p. 13).

Bibliografia

    BAMBA, M.; MELEIRO, A. Introdução. Filmes da África e da diáspora. Salvador: EDUFBA, 2012.
    HARTMAN, S. Vênus em dois atos. Eco Pós. Dossiê crise, feminismo e comunicação, v. 23, n. 3, 2020. p.12-33.
    FREITAS, K.; MESSIAS, J. O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus Afropessimismo: as distopias do presente. Imagofagia., nº 17, 2018.
    GATES, R. J.; GILLESPIE, M. B. Reivindicando os Estudos de Filme e Mídia Pretos. Film Quarterly, 2019, v. 72, n. 3, p. 13-15.
    MARKS, L. The Skin of Film: Intercultural Cinema, embodiemente, and the senses. Durham; Londres: University of Toronto Press, 2000.
    NASCIMENTO, B. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. Org. Alex Ratz. São Paulo: UBU, 2022.
    OLIVEIRA, J. C. A. “Precisamos vestirmo-nos com luz negra”. Entrevista com Florentino Flora Gomes. Rebeca. Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, v.5, n.2, 2016.
    SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: EDUSP, 2012.