Ficha do Proponente
Proponente
- Brenda Valois (UFPE)
Minicurrículo
- Brenda Valois é graduanda em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco e integrante do Cineclube XHY247. Pesquisou na Iniciação Científica o cineasta Jean-Claude Brisseau, sob orientação de André Antônio Barbosa, com o trabalho intitulado “Entre o Sonho e a Realidade: o figural em Jean-Claude Brisseau”, que recebeu menção honrosa na área de Humanidades, no 32º CONIC. Atua como diretora de arte, como no curta-metragem “Dias e Noites” (2024 – Janela Internacional de Cinema do Recife).
Ficha do Trabalho
Título
- JEAN-CLAUDE BRISSEAU: INTERDIÇÃO E TRANSGRESSÃO
Eixo Temático
- ET 3 – FABULAÇÕES, REALISMOS E EXPERIMENTAÇÕES ESTÉTICAS E NARRATIVAS NO CINEMA MUNDIAL
Resumo
- Este trabalho analisa o filme O Som e A Fúria (1988), do cineasta francês Jean-Claude Brisseau, em conjunto com o evento bíblico do Noli me tangere, pertencente ao Evangelho de João, buscando compreender as relações entre interdição e transgressão através do toque. Numa diegese em que o divino e o profano coexistem no mesmo plano ainda se faz presente uma ordem ou hierarquia que conduz o contato entre os seres, não permitindo que o profano alcance o sagrado sem a sua autorização prévia.
Resumo expandido
- Deambulando pela sua nova casa, em um dos conjuntos habitacionais do subúrbio parisiense, Bruno (Vincent Gasperitsch) se depara com uma aparição, uma Figura que surge ao fundo do corredor do apartamento: uma mulher vestindo um longo vestido carmim com rufo branco acompanhada por um falcão — como se transportada de uma pintura romântica do séc. XIX. A mulher e a ave estão sob uma luz azul mística que se distingue do resto do ambiente. Atraído pela aparição, o garoto percorre o corredor atrás dela até que todo o espaço seja tomado pela luminosidade distinta. A Figura, que não se apresenta mais com o vestido vermelho e sim com a sua nudez, convida e guia a mão de Bruno pelo seu corpo. Entretanto, quando o garoto decide prosseguir tocando-a sem sua assistência, o falcão que a acompanhava ressurge na imagem arranhando o rosto de Bruno, encerrando a cena e negando o toque.
Essa cena do filme “O Som e A Fúria” (1988) é um evento típico dos filmes de Jean-Claude Brisseau — cineasta francês que teve suas principais realizações entre as décadas de 1980 e 2000, tocando sempre em três pontos muito caros para o seu cinema: misticismo, brutalidade e sexualidade. Mas a marca do diretor se dá, efetivamente, dentre outros pontos, pela construção de uma diegese em que o real e o fantasma, o profano e o divino, coabitam. A apresentação da Figura que parece vir de lugar nenhum, como se flutuasse anacronicamente na história, é entendida aqui como uma zona de não-saber da imagem, um elemento visual, e parece expor uma rasgadura que o cinema de Brisseau provoca na noção de mimese do espectador. A Figura que a princípio é tida como um sonho estimula o questionamento sobre a sua imagem e a sua presença quando ela deixa de somente estar ali e passa então a agir sobre o corpo do garoto deixando um machucado que permanece mesmo na sua ausência. A marca do fantasma, do sagrado.
Apesar de haver um único regime no cinema de brisseau, parece existir uma ordem ou uma hierarquia que estabelece limites entre as partes que o compõem. Quando o falcão não permite que Bruno alcance sozinho o corpo daquela Figura, daquela aparição sagrada, ele está impondo um limite: Bruno só consegue alcançá-la perante a sua autorização. Quando o garoto segue tocando a mulher, está-se falando de uma transgressão que parte de um intuito de inverter a ordem estabelecida. Já quando o falcão machuca Bruno — e a ferida ainda se faz presente nas cenas em que ele não está junto à Figura — parece se tratar de um atestado, uma comprovação da coexistência daqueles dois seres num mesmo plano. Uma ação direta, uma marca, um rastro do sagrado para evidenciar a sua presença. Haveria uma relação de subsistência entre a lei e a sua infração associada à coexistência do divino e do profano na diegese brisseauniana.
Assim, o objetivo deste trabalho é analisar e compreender a transgressão e a interdição entre o divino e o profano — mais especificamente através do toque — e como essa ação, que se repete em outros filmes do cineasta francês (como em “L’Échangeur”, de 1982, e “Coisas Secretas”, de 2002), se relaciona com o evento bíblico do Noli me Tangere, presente no Evangelho de João, no Novo Testamento. A expressão Noli me tangere é traduzida como “Não me toques” ou “Não me contenhas”. Nesse evento bíblico, Jesus, aparecendo pela primeira vez ressuscitado, não permite que Maria Madalena toque o seu corpo quando ela o reconhece através do chamamento do seu nome pelo Cristo. O que está sendo chamado de corpo na verdade já não é mais carne, e sim espectro. O espírito ressuscitado de Jesus estava presente no mesmo regime em que o corpo profano de Maria Madalena, mas ela não pode tocá-lo. A Figura — tanto a aparição brisseauniana e o Cristo ressuscitado, quanto o próprio momento da interdição e da transgressão — é apresentada como uma unidade sagrada que não pode ser tocada deliberadamente pelo profano, e essa negação há de restabelecer a ordem que por sua vez voltará a incitar a sua transgressão.
Bibliografia
- AUERBACH, E. Figura. SP: Ática, 1997.
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