Ficha do Proponente
Proponente
- Diogo Vasconcelos Barros Cronemberger (USP)
Minicurrículo
- Diogo Cronemberger é doutorando em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo, onde também se formou no Curso Superior do Audiovisual, e mestre em Cinema pela Columbia University, em Nova York. Professor do Centro Universitário Senac – Santo Amaro e do Instituto Vera Cruz, é roteirista e diretor de curtas-metragens premiados e escritor com publicações em coletâneas diversas. É autor do livro “Roteiro de Curta-Metragem”, lançado pela editora Senac São Paulo em 2024.
Ficha do Trabalho
Título
- Considerações e questões preliminares sobre filmes como corpos doentes
Eixo Temático
- ET 1 – CINEMA, CORPO E SEUS ATRAVESSAMENTOS ESTÉTICOS E POLÍTICOS
Resumo
- Em discursos sobre filmes, seja na realização, seja na recepção, é comum o uso de termos relacionados ao corpo humano e ao universo da saúde para descrições e juízos de valor: tal filme é esquizofrênico, tal roteiro tem gordura, tal cena é um corpo estranho. A hipótese discutida é a existência de imperativos estéticos normativos sob a aparência de busca por uma “boa saúde fílmica”. Se podemos tomar um filme como um corpo doente, talvez a doença possa ser sua força – e até mesmo desejável.
Resumo expandido
- Partimos de uma analogia comum: fala-se em roteiros com barriga, filmes com gordura, ou esquizofrênicos, ou que não respiram, cenas que são corpos estranhos. Falam críticos e público sobre obras para descrevê-las e fazer juízos de valor, mas também realizadores durante sua produção, e script doctor é o nome que se dá ao responsável por ajudar a sanar problemas de roteiro. Nessa perspectiva, a hipótese é que, por trás do discurso análogo ao feito sobre a necessidade de corpos humanos saudáveis, estaria o imperativo de uma normatividade estética: a gordura deveria ser cortada, o corpo estranho extirpado, etc.
Seria um filme “saudável” melhor? Ou apenas normativo? Segundo quem? Para o benefício de quem? Na história do pensamento sobre cinema, a doença como metáfora ou analogia não é novidade. Vale ressaltar, em Hitchcock/Truffaut, a categoria de “grandes filmes doentes” (2004, p. 324), que dá à doença uma conotação positiva: trata-se de filmes não perfeitos como as obras-primas, mas geralmente mais vibrantes, as imperfeições abrindo frestas para o extravasamento das razões de ser das obras.
A partir dos anos 1990, em oposição às teorias de base psicanalítica, teóricos (em especial, teóricas) trouxeram o corpo para o primeiro plano, o do espectador e o do filme, como Williams e Sobchack, por exemplo, e Elsaesser e Hagener publicaram quase vinte anos depois um livro de teoria do cinema a partir de sua relação com o corpo humano e seus sentidos. É de Elsaesser, lidando com “filmes de jogos mentais”, o conceito de “patologia produtiva” (2009), que descreve e analisa personagens cujas doenças funcionam como formas de empoderamento. Desordens de personalidade, por exemplo, seriam úteis para disciplinar, controlar, ensinar ou treinar personagens e espectadores no século XXI. A paranoia, sintoma do transtorno de personalidade paranoide, poderia ser apropriada, ou até produtiva, para nossa sociedade de redes. O conceito de “patologia produtiva”, ligado a personagens, poderia ser deslocado para filmes com “problemas”, doentes por analogia com processos humanos, mas cujas doenças podem ser produtivas. Já o de “patologias fílmicas”, de Lucas de Barros (2021), também ligado a personagens, poderia ser deslocado para abranger corpos fílmicos doentes que não necessariamente representem formalmente estados de personagens com patologias, que poderiam existir ou não em suas narrativas. Seria importante precisar o conceito de corpo fílmico, ainda que provisoriamente: de certo modo antropomorfizado, parte do engendramento da trama de cada um, junto aos elementos sensoriais que a exprimem, ao longo de sua duração. Poderia a doença de um filme ser sua força, como a precariedade na “Estética da Fome” (1965)?
Se a literatura ajudou Pasolini (1982) com seu conceito de “cinema de poesia” (de novo 1965!), em que diríamos que a “doença” toma o corpo fílmico, tendo como paradigma a “saudável” linguagem “de prosa”, a área da saúde (sobretudo, a medicina e sua filosofia) pode ser útil para pensarmos um cinema doente. Segundo Canguilhem (2009), o anormal não é patológico e, para Hegenberg (1998), se a noção de doença envolve a de normalidade, há que se problematizar a última, e doença não teria a ver com o que é indesejável. Assim, uma “doença fílmica” poderia ser desejável? O que revelaria de um corpo fílmico? Poderia ser contagiosa? Mais que só a dimensões expressivas, tal comparação leva a questões políticas: um cinema hegemônico se deixaria “contaminar” por algo estranho para neutralizar a força de uma “doença”, como antes indicado às crianças em relação à catapora? O que é, enfim, doença? Mais que respostas, interessam dificuldades, imprecisões. Que essas analogias e metáforas permitam que interroguemos questões de formas novas, pensando mente e corpo não como opostos ou separados, mas extensões mútuas, como na obra de David Cronenberg, essencial por lidar com questões de saúde nos planos temático e expressivo, podendo expandir nosso instrumental analítico.
Bibliografia
- BARROS, Lucas Camargo de. Patologias fílmicas. Lisboa: FCSH, 2021.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
ELSAESSER, Thomas. Mind-Game Films. In: BUCKLAND, Warren (org.). Puzzle films: Complex Storytelling in Contemporary Cinema. West Sussex: Blackwell, 2009.
ELSAESSER, Thomas; HAGENER, Malte. Teoria do cinema: Uma introdução através dos sentidos. Campinas: Papirus, 2018.
HEGENBERG, Leonidas. Doença: um estudo filosófico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.
PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Hereje. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982.
ROCHA, Glauber. Estética da fome (1965). In: Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
SHAVIRO, Steven. O corpo cinemático. São Paulo: Paulus, 2015.
SOBCHACK, Vivian. The address of the eye. Princeton: Princeton University Press, 1992.
TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
WILLIAMS, Linda. Film Bodies: Gender, Genre and Excess. Film Quarterly, Berkeley, v.44, n. 4, 2-13, 1991.