Ficha do Proponente
Proponente
- Xosé Iván Villarmea Álvarez (iHUS-USC / CEIS20-UC)
Minicurrículo
- Iván Villarmea Álvarez trabalha como professor de história do cinema na Universidade de Santiago de Compostela (Galiza, Espanha). Publicou o livro ‘Documenting Cityscapes. Urban Change in Contemporary Non-Fiction Film’ (2015) e co-editou os volumes ‘Memórias em Movimento. História e Trauma nos Cinemas Ibero-Americanos’ (2023), ‘New Approaches to Cinematic Space’ (2019) e ‘Jugar con la Memoria. El Cine Portugués en el Siglo XXI’ (2014).
Ficha do Trabalho
Título
- Fordlandia Malaise: estratégias visuais para superar o olhar extrativista
Seminário
- Cinema e Espaço
Resumo
- Esta comunicação tenciona analisar as estratégias de encenação utilizadas pela cineasta portuguesa Susana de Sousa Dias na médio-metragem Fordlandia Malaise (2019) com o intuito de refletir sobre o confronto entre diferentes olhares e relatos que ainda hoje condicionam a percepção da natureza amazónica. A ideia é assim pôr em causa o olhar extrativista através de elementos como a montagem intersticial de fotografias de arquivo, o registo de imagens ambientais ou a inclusão de testemunhos locais.
Resumo expandido
- O olhar extrativista é muito longevo: as câmaras levam percorrendo o mundo desde as origens da fotografia e do cinema, mas demoraram um século em chegar às mãos dos moradores dos lugares mais longínquos. O lugar de fala, portanto, é um lugar em disputa: Quem pode filmar a quem? E quem pode filmar o que? Qualquer registro visual, aliás, revela implicitamente o seu lugar de fala, pelo que a revisão das imagens do passado exige também pôr em causa o seu lugar de fala e, com ele, o seu discurso, para assim poder construir outros discursos com outras vozes que foram silenciadas.
O lugar de fala da cineasta portuguesa Susana de Sousa Dias é o de uma intelectual europeia que tenciona redefinir o sentido das imagens dos arquivos policiais, militares e empresariais com o intuito de recuperar a memória reprimida de um passado ominoso: os seus filmes tentam reconstruir aqueles momentos que não puderam ser registados —ou que foram intencionalmente apagados— para revelar os pontos cegos da historiografia. A média-metragem ‘Fordlandia Malaise’ (2019), por exemplo, começa com uma montagem intersticial de fotografias realizadas pelos colonos norte-americanos que tentaram criar uma company town na Amazonia para a Ford Motor Company entre 1927 e 1945. Aquelas imagens estabelecem uma narrativa que deixa de fora muitos elementos, nomeadamente as experiências dos moradores do lugar, com especial destaque para as mulheres, os ameríndios e os trabalhadores migrantes, mas também os direitos e as necessidades da natureza, que é representada como um recurso passivo, nunca como um ecossistema ativo. O arquivo, portanto, conta uma história parcial que opaca outras histórias que a realizadora tenta trazer à tona mediante diferentes estratégias de encenação, entre as que salienta o contraste entre os planos aéreos, filmados com uma câmara-drone, e os testemunhos sonoros dos moradores do lugar.
O fracasso dos projetos agroindustriais da Ford Motor Company no Brasil truncou a narrativa que tentavam construir as fotografias conservadas no seu arquivo: os colonos norte-americanos, finalmente, não conseguiram submeter a natureza equatorial aos seus desígnios, pelo que a cidade utópica que tentaram construir no meio da selva passou a ser, de acordo com a sua perspectiva, uma cidade fantasma. Susana de Sousa Dias, no entanto, não encontrou uma cidade abandonada quando chegou a Fordlândia em 2018, mas “um espaço físico habitado e um espaço identitário criado por várias gerações” (2020, 16); uma cidade real, viva, cuja existência desafiava essas duas narrativas hegemónicas e complementárias construídas desde fora —a cidade utópica e a cidade fantasma— e obrigava a pensar no que havia antes da chegada dos colonos norte-americanos à região, em 1927, e no que ficou depois do abandono do seu empreendimento, a partir de 1945, isto é, nas lacunas da história de Fordlândia. De frente a esse vazio, o impulso da realizadora foi colocar de lado o que Enzo Traverso identifica como “memórias fortes” —os discursos alimentados pelas instituições oficiais e os estados— para centrar-se nas “memórias fracas” da população como ferramenta para recuperar o que fora apagado (Traverso 2005; Dias 2020, 18).
‘Fordlandia Malaise’, portanto, quer libertar a vila operária e a natureza amazónica desse olhar neocolonial e extrativista através da representação dos tempos da paisagem —o antes e o depois— mediante elementos como a montagem intersticial das fotografias de arquivo, os novos registos de imagens ambientais ou a inclusão das vozes e dos testemunhos dos seus moradores. A análise destas estratégias de encenação tenciona abrir uma reflexão sobre o confronto entre os diferentes olhares e relatos que ainda hoje condicionam a percepção da natureza amazónica, que aqui sai dos interstícios para ocupar a maioria de planos como uma realidade incontornável que condiciona a experiência de todas as pessoas que passaram por lá, incluída a realizadora e, com ela, os espectadores deste filme
Bibliografia
- · Berardi, F. 2017. Futurability. The Age of Impotence and the Horizon of Possibility. Verso Books.
· Dias, S. de Sousa. 2020. “Fordlandia Malaise: memórias fracas, contra-imagem e futurabilidade”. RCL — Revista de Comunicação e Linguagens, vol. 52: 10-24.
· Fagioli, J. 2022. “A cidade esquecida de Henry Ford e a vida que pulsa em Fordlândia: entrevista com Susana de Sousa Dias sobre o filme Fordlandia Malaise”. Rebeca – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, vol. 11, no. 2: 1-7. https://doi.org/10.22475/rebeca.v11n2.769
· Schefer, R. 2020. “A trama do colonial. ‘Fordlândia Malaise’, de Susana de Sousa Dias”. Esferas, vol. 1, no. 16: 15-26. https://doi.org/10.31501/esf.v1i16.11141
· Stein, I. 2023. “Fordlandia Malaise and Tapajós’ living ruins”. Em Archives in ‘Lusophone’ Films, editado por S. Camacho, A. B. Morais e F. Rosário, 47-68. Edições Humus.
· Traverso, E. 2005. Le Passé, mode D’emploi: Histoire, Mémoire, Politique. La Fabrique