Ficha do Proponente
Proponente
- Daniel Magalhães de Andrade Lima (UFPE)
Minicurrículo
- Daniel de Andrade Lima é Doutor, Mestre e Bacharel em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com período de doutorado-sanduíche no Departamento de Música da University of Liverpool (Bolsa CAPES/PDSE). Especialista em Sistema Laban/Bartenieff de estudos do movimento pela Faculdade Angel Vianna (RJ). Atua entre as práticas e teorias do corpo e da mídia, em particular nos estudos sobre vozes e gestos nas culturas midiáticas.
Ficha do Trabalho
Título
- Sujeições gestuais do sexo fílmico: imaginações coreográficas sobre os desvios inaugurais dos homens
Resumo
- Cenas de sexo gay no cinema são frequentemente imaginadas como momentos “inaugurais” de desvio. O sexo, assim, aparece como um espaço de reinvenção em que coreografias organizam corpos, desejos e identidades, revelando e negociando normas de gênero. A sugestão aqui é que a coreografia fílmica, capaz de dar prazer, mas também de esquadrinhar o sexo, pode evocar noções normativas sobre sexualidade, mas ajuda também a refletir sobre o papel do outro na formação do sujeito dissidente.
Resumo expandido
- Um homem toca outro. Entre flertes e tensão, com planos que fazem ver seus olhos – e como se olham –, eles se tocam. De um jeito novo, desestruturando quem um dia foram. As mãos apertam, os lábios tremem, gemidos escapam. Novas posturas aparecem: um cede ao outro, se deitam, testam toques que refazem o sexo que outrora aprenderam. Cravam os dentes, usam a língua, arrepiam-se – às vezes, um vampiro morde.
A cena, familiar em suas variações, insiste em aparecer: do comercial Vermelho, Branco e Sangue Azul (Matthew López, 2023), passando por Maurice (James Ivory, 1987) e As Canções de Amor (Christophe Honoré, 2007), e além. No jogo entre narrativas e atrações (Baltar, 2023), articulando convenções estilísticas do sexo fílmico (Williams, 2008) e recorrendo aos “pensamentos carnais” (Sobchak, 2004), uma noção de sexualidade se estabelece: imagina-se o sexo – potencialmente o primeiro sexo “desviante” – como experimentação e deriva, mas principalmente como inauguração de um novo “eu”. No campo dos “programas gestuais” (Guimarães, 2019), para o sexo gay, e do sexo em diante, atores ensaiam outros gestos, reorganizando personagens e negociando convenções de gênero.
Sabemos que as sexualidades não surgem em um só momento nem são feitas apenas dentro do corpo, pois acontecem em um espaço exterior onde as interioridades convergem. Tampouco são descobertas de supetão: formam-se por meio de interações com instituições, práticas cotidianas, desejos e saberes (Foucault, 2020), compondo uma história contínua de interdições e experimentações. Ainda assim, há um esforço imaginativo de que gestos sexuais e “cenas de sexo” podem condensar um momento inaugural da dissidência. A partir desse momento, nos conta parte da cultura midiática, o sujeito já não é mais o mesmo: consolida aquilo que temia ou desejava ser, ou descobre, acometido pelo desejo, ser algo que sequer imaginou. A cena de sexo, então, se torna também uma cena de sujeição: o momento em que um sujeito é feito e, se fazendo, precisa negociar com termos (conceituais, mas também gestuais) que o antecedem, com as normas (de gênero) que o pressionam e com os desejos que sente; como, em tantos momentos, elucidou Judith Butler (2015; 2017).
Interessa-me como essa cena segue protocolos coreográficos. Uma coreografia, como dispositivo normativo, ajuda a compreender processos de sujeição no cotidiano (Foster, 1998). Como dispositivo fílmico, organiza os corpos nos aparatos do cinema (Andrade Lima, 2022). Uma coreografia, afinal, mesmo quando não assumida como tal, ainda organiza os toques, os gestos, as aproximações e afastamentos, frequentemente seguindo dinâmicas de gênero (fílmico e enquanto sistema de dominação). Se a coreografia maravilha (Baltar, 2023), também esquadrinha. Analogamente, é pela coreografia sexual que, no âmbito do corpo e das subjetividades, as normas que se articulam nas sujeições são tanto reiteradas quanto superadas.
Tomar protocolos coreográficos, então, nos “desvios inaugurais” entre homens é uma maneira de engajar com os gestos e, ainda assim, enquadrá-los. No olhar coreográfico sobre o sexo que me interessa, afinal, engajo com as normas que acontecem no desvio, mas, especialmente, com os desvios que aparecem nos espaços normativos. Ao fim, a imaginação coreográfica a qual me refiro parece agenciar potencialmente valores normativos sobre sexualidade, mas também valoriza o encontro com o outro como um espaço de formação do sujeito dissidente, imaginando o sexo como uma espécie de gesto de se fazer outro, dado que, como argumentou Butler, “estamos, portanto, sempre, de alguma forma, sendo afetados enquanto afetamos, sendo submetidos a algo enquanto agimos, sendo, como Merleau-Ponty insistia, tocados, invariavelmente, no ato de tocar” (Butler, 2015, p. 62, tradução nossa). Às vezes, enquanto os homens dos filmes se tocam e se transformam, os buscamos. E, buscando-os, também somos tocados.
Bibliografia
- BALTAR, M. Corpo e afeto: atualizações do regime de atrações no cinema brasileiro contemporâneo. Aniki – Revista Portuguesa da Imagem em Movimento, vol. 10, nº 2, p. 4-28. 2023.
BUTLER, J. Senses of the subject. New York: Fordham University Press, 2015.
_____. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
DE ANDRADE LIMA, D. M. Coreografias e regulações de gênero no cinema: gestos modernos em Maurice e outros filmes. Iluminuras, Porto Alegre, v. 23, n. 62, 2022.
FOSTER, S. L. Choreographies of gender. In. Signs. Vol. 24, No. 1, pp. 1-33. 1998.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1 – A vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Paz e Terra, 2020.
GUIMARÃES, P. O Ator Como Forma Fílmica: metodologia dos estudos atorais. Aniki – Revista Portuguesa da Imagem em Movimento, vol. 6, n° 2, p. 81-92. 2019.
SOBCHAK, V. Carnal Thoughts. Berkeley: University of California Press, 2004.
WILLIAMS, L. Screening sex. Durham: Duke University Press,