Ficha do Proponente
Proponente
- Patricia Cunegundes Guimaraes (PUC-Rio)
Minicurrículo
- Doutora em Comunicação pela PUC-Rio. Mestra em Comunicação pela UnB. Pesquisa imagem e memória na América Latina. Jornalista especializada em comunicação corporativa e gestão de crise.
Ficha do Trabalho
Título
- A montagem crítica de Jonathan Perel em Camuflaje
Seminário
- Cinema e Espaço
Resumo
- O documentário Camuflaje (2022), de Jonathan Perel, articula memória e paisagem no Campo de Mayo, centro clandestino da ditadura argentina. A partir da montagem crítica, Perel tensiona memórias ficcionais e documentais, transformando o espaço em um território de disputa memorial. Ao acompanhar o escritor Félix Bruzzone, o filme confronta silêncios e promove um cinema contra-monumento, que questiona políticas de esquecimento e a eficácia dos sítios de memória no presente.
Resumo expandido
- O documentário Camuflaje (2022), de Jonathan Perel, constrói um discurso crítico sobre a memória da última ditadura militar argentina (1976-1983) ao explorar o Campo de Mayo, um dos principais centros clandestinos de detenção e tortura do regime. A partir da montagem crítica – conceito desenvolvido por Georges Didi-Huberman –, Perel articula espaço e memórias ficcionais e documentais, para criar um cinema contra-monumento, que questiona a estabilidade da memória oficial e desafia as políticas memorialísticas do Estado.
A narrativa acompanha o escritor Félix Bruzzone, filho de uma militante desaparecida no Campo de Mayo, que assume o papel de Fleje, um corredor que percorre os arredores do local. Essa construção reforça a ideia da paisagem como um arquivo vivo, onde diferentes camadas temporais coexistem. Bruzzone/Fleje interage com personagens que expressam diferentes relações com o espaço: sobreviventes da repressão, comerciantes que trabalham no entorno, um corretor de imóveis que enxerga no local uma oportunidade de especulação urbana, e até mesmo uma vendedora que comercializa terra do Campo de Mayo como suvenir durante as marchas das Mães da Praça de Maio.
O Campo de Mayo, situado a 30 quilômetros de Buenos Aires e ainda em operação como unidade militar, foi o destino final de milhares de desaparecidos da ditadura, muitos dos quais foram arremessados ao mar nos chamados “voos da morte”. Apesar desse histórico, sua transformação em um sítio oficial de memória foi interrompida, refletindo os desafios políticos contemporâneos em torno da preservação da memória na Argentina. A proposta inicial do governo Kirchner previa a criação de um Espaço de Memória e Promoção dos Direitos Humanos, mas essa iniciativa encontra-se ameaçada no atual contexto de revisionismo histórico e negacionismo, marcado por iniciativas políticas que tentam relativizar os crimes da ditadura.
A escolha estética de Perel para abordar essa disputa memorialística se afasta do documentário tradicional de denúncia. Diferente de seus trabalhos anteriores, que observavam o espaço de forma mais estruturalista, em Camuflaje o diretor insere um deslocamento subjetivo, envolvendo um personagem errante que explora o Campo de Mayo por meio do corpo e do movimento. Fleje, descalço, corre pelos arredores, experimentando fisicamente o território e se aproximando do espaço da memória não pela via da denúncia direta, mas através da experiência sensorial e do contato com diferentes perspectivas. O som dos pés descalços batendo contra o asfalto, os ruídos do trem passando ao fundo e os helicópteros militares sobrevoando a área intensificam a atmosfera de tensão e tornam o espaço um personagem ativo no filme.
Em um de seus momentos mais emblemáticos, Camuflaje apresenta Fleje utilizando um óculos de realidade virtual para visualizar uma recriação digital do Campo de Mayo tal como existia durante a ditadura. Esse gesto reforça a ambiguidade entre documento e ficção no filme, questionando não apenas a efetividade dos espaços de memória, mas também as formas contemporâneas de representar e experienciar o passado. O uso da tecnologia para reconstruir um espaço que foi deliberadamente apagado sugere tanto a potência quanto as limitações da memória digital na reconstituição de eventos traumáticos.
A crítica à espetacularização da memória se intensifica na cena em que um corretor de imóveis tenta vender um terreno próximo ao Campo de Mayo, enfatizando a ausência de “tiros de canhão” como um atrativo para investidores. Essa banalização do espaço reflete o risco de apagamento da memória em favor de interesses comerciais e expõe a fragilidade das políticas memorialísticas frente às pressões econômicas e políticas.
Bibliografia
- DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo. História da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
DIDI-HUBERMAN, G. Quando as imagens tomam posição – O olho da História I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.
DIDI-HUBERMAN, G. Remontagens do tempo sofrido. O olho da História II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.
GORELICK, A. Materiales de la memoria. Informe Escaleno, Buenos Aires, 29 de março de 2014. Acesso em 15 abril de 2024. Disponível em http://www.informeescaleno.com.ar/index.php?s=articulos&id=134.
PEREL, J. El cine como contra-monumento. In: Constelaciones – Revista de Teoría Crítica. Numero 7 (Deciembre 2015).
POLLAK, M. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos históricos, v. 2, n. 3, Rio de Janeiro, 1989, p. 3-15.
PRYSTHON, A. F. Recortes do mundo: espaço e paisagem no cinema. Campinas, SP: Pontes Editores, 2023.
PRIVIDERA, N. Cine documental. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: la marca editora, 2022.