Ficha do Proponente
Proponente
- NINA VELASCO E CRUZ (UFPE)
Minicurrículo
- Nina Velasco é Professora adjunta da Universidade Federal de Pernambuco, participando do corpo docente do curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Atua principalmente nos seguintes temas: arte e comunicação, fotografia e cinema.
Ficha do Trabalho
Título
- O corpo em “A Substância” (2024) sob a lente da arte de Cindy Sherman
Mesa
- DESLOCAMENTOS ENTRE CINEMA E ARTE CONTEMPORÂNEA
Resumo
- O trabalho examina o longa “A Substância” (2024), de Coralie Fargeat, aproximando-o de obras da artista contemporânea Cindy Sherman. Para além das referências cinematográficas, identificadas pelo público entre o filme e outros clássicos do gênero do Horror (Psicose, O iluminado, entre outros), busco apontar no trabalho de Sherman referências não apenas visuais, mas também temáticas, ressaltando o aspecto crítico e feminista da artista e do filme em questão.
Resumo expandido
- O longa-metragem A Substância (2024), dirigido por Coralie Fargeat, foi um dos grandes sucessos da última temporada, recebendo diversos prêmios internacionais e gerando repercussões no público e na crítica. O filme aborda a padronização dos corpos femininos e seus impactos na identidade da protagonista, Elizabeth Sparkle, uma celebridade em decadência que comanda um programa de ginástica televisivo e se vê descartada ao ser demitida no dia em que completa 50 anos. A personagem, então, recebe a proposta de uma substância milagrosa capaz de transformá-la em uma versão não apenas mais jovem, mas também “melhor” dela mesma: “mais nova, mais bonita, mais perfeita”. A partir daí, sua vida se divide em duas, alternando entre uma semana como Sue — seu duplo mais jovem e belo — e outra em que retorna a ser Elizabeth.
As consequências dessa alternância e a recusa de Sue em dividir sua existência com Elizabeth levam a narrativa a desdobramentos aterrorizantes. Com uma estética que foge ao naturalismo, direção de arte e mise-en-scène que priorizam cores fortes e contrastantes, além de espaços vazios e estéreis, onde artificialidade e superficialidade imperam, o filme evolui para uma narrativa típica do body horror, na qual o corpo abjeto se associa ao “feminino monstruoso” (CREED, 2007), tornando-se progressivamente amorfo.
Muitos espectadores e cinéfilos identificaram no filme referências mais ou menos explícitas a clássicos do cinema de horror, especialmente em alguns enquadramentos e cenários, como a cena do banho de Psicose ou o corredor acarpetado de O Iluminado. Também são perceptíveis conexões com narrativas clássicas que exploram a angústia diante da decadência física e da perda da beleza, frequentemente associadas a dilemas morais sobre o conflito entre o mal interior e a aparência exterior, como em O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. No entanto, gostaria de acrescentar um conjunto de referências menos evidentes, mas essenciais para compreender as intenções do filme, relacionando-o com a trajetória da artista Cindy Sherman, que há décadas tematiza essa questão no que ela tem de específico para mulheres.
Cindy Sherman tornou-se mundialmente reconhecida no campo da arte contemporânea, especialmente pela série de fotografias/autorretratos Untitled Film Stills (1977-1980), na qual simulava stills de filmes dos anos 1950, posando como personagens femininas belas e misteriosas. Esse trabalho evoluiu na década de 1980 para séries chamadas Untitled, nas quais elementos de estranheza, ironia e grotesco foram acrescentados às poses da artista, remetendo mais diretamente à fotografia de moda e publicidade. É nesse ponto que identifico uma estratégia comum entre o trabalho de Sherman e o filme de Fargeat:
“… as imagens sugerem que a oposição binária ao corpo perfeito da manequim é o grotesco, e que o corpo suave e liso, polido pela fotografia, é uma defesa contra um corpo estranho, inquietante e desconfortável. A partir dessa perspectiva, a superfície do corpo, tão cuidadosamente apresentada nas fotografias iniciais, parece se dissolver para revelar uma monstruosa alteridade por trás da fachada cosmética.” (MULVEY, 2019)
Nas séries de 1985 e 1987, o corpo feminino da artista se desintegra progressivamente, culminando na total decomposição na imagem Untitled #167 (1986), em que fragmentos de corpo estão espalhados no chão sujo da sarjeta. Essa imagem remete às cenas finais do filme, quando o híbrido ElizaSue se desintegra na poeira da Calçada da Fama. A partir dessa aproximação, argumentamos que o filme, assim como a obra de Sherman, “delineia o abismo ou atoleiro que sobrecarrega o corpo desfetichizado, privado da semiótica do fetiche, reduzido a ser ‘inexprimível’ e desprovido de significância” (MULVEY, 2019), promovendo um olhar feminista sobre como o corpo feminino é culturalmente moldado.
Bibliografia
- CREED, B. The Monstrous-Feminine: Film, Feminism, Psychoanalysis. Nova Iorque: Routledge, 2007
FATORELLI, A. Fotografia Contemporânea: entre o cinema, o vídeo e as novas mídias. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2013.
MULVEY, L. Cosméticos e abjeção: feminismo e fetichismo na fotografia de Cindy Sherman. In: Revista Zum, 28 de junho de 2019. Disponível em: https://revistazum.com.br/radar/cosmeticos-abjecao-cindy-sherman/
_________. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, I. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.