Ficha do Proponente
Proponente
- Igor Nolasco Rocha Marçal (UFF)
Minicurrículo
- Igor Nolasco Rocha Marçal é bacharel em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio e mestrando pelo PPGCine-UFF. Seu artigo “Jardim de Guerra (1968) e a redescoberta de Neville D’Almeida como inventor” foi publicado pela revista Escaleta (ISSN 3085-5594). Apresentou a comunicação “Pode o subalterno filmar? Criação coletiva e vozes marginalizadas no filme O Prisioneiro da Grade de Ferro” no XIII Seminário Letras Expandidas, na PUC Rio. Desenvolve pesquisas relacionadas à história do cinema brasileiro.
Ficha do Trabalho
Título
- Epistemologias negras na formação cultural do Rio de Janeiro, a partir do cinema de Zózimo Bulbul
Eixo Temático
- ET 4 – HISTÓRIA E POLÍTICA NO CINEMA E AUDIOVISUAL DAS AMÉRICAS LATINAS E DOS BRASIS
Resumo
- Este trabalho visa discorrer sobre como o cineasta Zózimo Bulbul, nos filmes “Pequena África”, “República Tiradentes” e “Samba no Trem”, exemplifica a importância das epistemologias negras no desenvolvimento cultural do Rio de Janeiro. Através de uma bibliografia multidisciplinar, busca-se compreender o papel ocupado por uma população marginalizada que firmou suas bases em um Rio que almejava modernizar-se à moda da arquitetura e dos costumes europeus — e mudou radicalmente o curso dessa cidade.
Resumo expandido
- Este trabalho visa promover um pensamento crítico acerca de questões tematizadas e discutidas em três filmes do ator e cineasta Zózimo Bulbul (1937-2013): Pequena África (2002), República Tiradentes (2005) e Samba no Trem (2005). Fitas de curta ou média-metragem, elas foram rodadas por um autor interessado em direcionar sua obra a uma investigação e celebração da cultura negra, retomando um trabalho como diretor interrompido desde a conclusão de seu longa sobre os cem anos do fim oficial da escravidão no Brasil, Abolição (1988).
Os últimos anos de Bulbul estiveram entrelaçados com a criação e a administração do Centro Afro Carioca de Cinema e com a realização anual do Encontro de Cinema Negro, evento dedicado à promoção de sessões de filmes afro-diaspóricos. Seu trabalho como cineasta, rodado em caráter independente e em larga medida incompatível com os formatos exigidos para veiculação comercial, era exibido com regularidade em mostras, homenagens e sessões especiais realizadas por órgãos atentos a seu papel como cineasta afro-brasileiro pioneiro. Muito se escreve sobre Alma no olho (1973), seu primeiro curta, mas sua obra posterior ainda é objeto de um número consideravelmente menor de trabalhos substanciais. Boa parte desses filmes, ocasionalmente rodados em vídeo, pouco exibidos e conhecidos, carecem de uma redescoberta definitiva por parte do público e mesmo dos pesquisadores. A obra tardia de Bulbul ainda oferece vastas entradas e possibilidades de análise a serem exploradas.
Os filmes selecionados por este trabalho possuem, em comum, um recorte espacial e temporal: discorrem sobre a influência que a população negra exerceu na formação social e cultural do Rio de Janeiro pós-abolição. Isso se deu na contramão do projeto oficial de modernização do então Distrito Federal (que, a rigor, iria até a década de 1930), deixando influências duradouras para a identidade local — mesmo que cimentando-as em um momento histórico no qual sua música e suas manifestações religiosas eram alvo de repressão oficial, sua sabedoria considerada naïf e sua pele, vista como uma mancha a ser expurgada para a prosperidade de uma pretensa metrópole europeizada nos trópicos. Tal visão integrava um projeto de erradicação a longo prazo do negro no Brasil, sustentado por cientistas e autoridades, chamado por Lélia Gonzalez (1984) de “ideologia do branqueamento”.
As origens e o desenvolvimento do samba, sua importância social, as diversas formas de religiosidade afro-brasileira (do candomblecismo às irmandades católicas tradicionais) e a ocupação de certos espaços públicos como núcleos nos quais a sociabilidade dos marginalizados mostrava-se possível são algumas das questões colocadas em pauta por Bulbul nessas obras. Ao acompanharmos as populações negras que se fixaram no Rio desenvolvendo suas epistemologias, podemos perceber aquilo que Edimilson Pereira de Almeida chama de “um cenário dinâmico no qual a reorganização social do sujeito afro-descendente […] é tensionada por diferentes modulações de tempo, espaço, gênero e classe social” (ALMEIDA, 2022, p.27). No caso dos filmes tematizados por este trabalho, é possível verificar que isso se traduz mesmo em termos de linguagem cinematográfica.
A perspectiva escolhida foi a de um trabalho multidisciplinar, que vai da sociologia à música, passando pelos estudos literários e, evidentemente, pelo cinema. Almejamos discutir sobre como Bulbul, por meio dos filmes aqui relacionados, reforça a importância das epistemologias afro-brasileiras na construção do ethos carioca. Para a formação deste, teria sido fundamental a cumplicidade característica dos modos de vida africanos que uniu uma população marginalizada e assegurou a perpetuação, a renovação e a disseminação de suas matrizes culturais. Na obra do cineasta, é possível entender o Rio de hoje por meio de uma capital que ainda estava se modernizando, mas já era entremeada por questões que parecem ter, tantas décadas depois, apenas mudado de roupagem.
Bibliografia
- CARVALHO, Noel dos Santos (org). Cinema negro brasileiro. Campinas: Papirus, 2022.
GONZALEZ, Lélia; LIMA, Márcia (org.); RIOS, Flavia (org). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo: Zahar, 2020.
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. São Paulo: Todavia, 2022.
NASCIMENTO, Beatriz; Ratts, Alex (org.). O negro visto por ele mesmo: ensaios, entrevistas e prosa. São Paulo: Ubu, 2022.
NASCIMENTO, Elisa Larkin. Apresentação; Prefácio. In: NASCIMENTO, Abdias. Sortilégio. São Paulo: Perspectiva, 2022.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo, 2023.
RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
STAM, Robert. Multiculturalismo tropical: uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiro. São Paulo: EdUSP, 2007.