Ficha do Proponente
Proponente
- Fernanda Jaber (USP)
Minicurrículo
- Fernanda Jaber é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP), onde integra o Grupo de Estudos sobre a Guerra Fria (USP/CNPq). Mestre em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e bacharel em Audiovisual pela USP, tem experiência na pesquisa histórica sobre cinema e política. Seu doutorado investiga a censura e a circulação de filmes entre Brasil e Espanha durante a Guerra Fria.
Ficha do Trabalho
Título
- Entre a censura e a criação: Glauber Rocha e os bastidores de Cabeças cortadas
Resumo
- Este trabalho analisa os bastidores de Cabeças cortadas (1970), filme de Glauber Rocha produzido na Espanha sob financiamento do regime franquista. A partir de documentos de censura espanhóis e correspondências de Glauber, a pesquisa discute as contradições entre o discurso radical do cineasta e sua colaboração com um sistema de produção controlado pelo Estado autoritário espanhol. Dessa forma, contribui-se para o debate sobre arquivos de censura como espaços de disputa histórica.
Resumo expandido
- O filme Cabeças cortadas (1970), dirigido por Glauber Rocha, representa um episódio singular na história da censura e da produção cinematográfica sob regimes autoritários. Financiado pelo regime franquista, o projeto envolveu negociações que revelam tanto a contradição do discurso político de Glauber quanto a flexibilidade estratégica da censura espanhola.
Nos anos 1960, o reconhecimento internacional de Glauber Rocha e do Cinema Novo consolidou o Brasil como um polo cinematográfico inovador. Paralelamente, a Espanha, buscando projetar uma imagem de abertura política, flexibilizou parcialmente sua censura e ampliou a exibição de filmes estrangeiros em espaços como as Salas Especiais de Arte e Ensaio. Nesse contexto, durante o Festival de Cannes de 1969, onde venceu o prêmio de Melhor Diretor, Glauber Rocha recebeu dos catalães Pere Fages e Antoni Kirchner o convite para filmar na Espanha.
Os filmes feitos na Espanha franquista necessitavam da aprovação prévia do roteiro. Para viabilizar a produção, Glauber apresentou à censura um roteiro baseado na peça shakespeariana Macbeth, evitando referências explícitas a regimes autoritários. A sinopse descrevia um rei genérico, inserido em um drama alegórico sobre poder e memória. Por parte dos produtores, havia receio de que o projeto fosse vetado. No entanto, o governo espanhol não apenas aprovou o filme sem cortes, mas concedeu um subsídio de 30% do orçamento, posteriormente ampliado para 40%, reconhecendo-o como de “interesse especial”. Essa categoria era concedida a projetos que fossem interessantes para a imagem do regime e do cinema espanhol.
As filmagens ocorreram na Catalunha em 1970. Quando o filme pronto foi submetido à censura para conferência, ele diferia radicalmente do roteiro aprovado. O protagonista, antes um rei abstrato, transformou-se em Díaz, um ditador latino-americano exilado na Espanha, assombrado por memórias de sua tirania. A narrativa fragmentada e simbolista questionava o autoritarismo, o colonialismo e as relações de poder. Os censores registraram desconforto com o personagem, interpretado por Paco Rabal, que poderia ser visto como um alter ego de Franco.
O processo de censura revela também o impacto da estrutura narrativa do filme. A fragmentação da montagem dificultava uma leitura unívoca da obra, levando os censores a classificá-la como “confusa” e “hermética”. Por fim, o filme foi aprovado com restrição para maiores de 18 anos, sob o argumento de que sua complexidade simbólica reduzia seu potencial subversivo. Além disso, a administração franquista ampliou o financiamento do filme para 40% para garantir sua estreia no Festival de San Sebastián.
A recepção no Festival foi negativa. Segundo relatos, parte do público abandonou a sessão antes do final. A crítica espanhola classificou o filme como “caótico” e “incompreensível”, destacando que ele não era nem espanhol nem hispano-americano, pois não assimilou profundamente seus elementos (La Estafeta Literaria, 1970). Alfonso Sánchez, no Hoja Oficial del Lunes, afirmou que Glauber fez “o contrário de um cinema político”, criando um filme inacessível. Em carta ao cineasta, o crítico francês Michel Ciment considerou a obra confusa e paradoxal, ao que Glauber respondeu que o filme não era “recuperável pela direita, nem utilizável pela esquerda” (Arquivo Glauber Rocha, 1970).
Apesar do fracasso comercial e de recepção, o filme foi apropriado pelo regime franquista como símbolo de sua suposta tolerância cultural. Nos anos seguintes, a imprensa espanhola continuou a mencioná-lo como evidência da flexibilização da censura, mesmo que sua exibição tenha sido restrita a circuitos alternativos. Pode-se dizer que a análise dos documentos revela como a produção e exibição do filme foram mediadas por interesses políticos e pragmatismo artístico. O caso de Cabeças cortadas contribui para o debate sobre arquivos como espaços de disputa histórica e evidencia a instrumentalização do cinema por regimes autoritários.
Bibliografia
- Fontes primárias:
Archivo del Festival de San Sebastián
Archivo General de la Administración
Arquivo Glauber Rocha / Cinemateca Brasileira
Biblioteca Virtual de Prensa Histórica
Fontes secundárias:
BENTES, Ivana. Glauber Rocha: cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
CAPARRÓS LERA, Josep Maria. História crítica del cine español. Barcelona, Editorial Ariel, 1999.
GUBERN, Román. La censura: función política y ordenamiento jurídico bajo el franquismo (1936-1975). Barcelona: Ediciones Península, 1981.
ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.