Ficha do Proponente
Proponente
- Juliana Magalhães e Ribeiro Gusman (USP)
Minicurrículo
- Doutora em Meios e Processos Audiovisuais (USP). Desde 2019, é professora assistente do Departamento de Comunicação Social da PUC Minas. Leciona no curso de Pós-Graduação em Culturas Urbanas, Mídia e Memória da instituição. Integra os grupos de pesquisa Poéticas Femininas, Políticas Feministas (UFMG), Mídia e Narrativa (PUC Minas) e MidiAto (ECA-USP). Faz parte da equipe curatorial da Cardume Curtas, do FestCurtasBH e da Mostra Mulheres Mágicas. É coordenadora editorial do site Sara y Rosa.
Ficha do Trabalho
Título
- Quebrando espelhos: prostituição e monstruosidades feministas no cinema de Marleen Gorris
Seminário
- Estudos do Insólito e do Horror no Audiovisual
Resumo
- Neste artigo, destacamos obras ficcionais de pendor feminista que, nos anos 1970, rasuraram um imaginário prostibular estigmatizante consolidado pelo cinema. Analisaremos, sobretudo, o filme “Broken Mirrors” (1984), de Marleen Gorris, singular pela forma como reconfigura, criticamente, noções de monstruosidade (Creed, 2022). Com esse gesto, Gorris vislumbra, supomos, uma “estética feminista” (De Lauretis, 1987), interpelando audiências a partir da materialidade de seus corpos, medos e desejos.
Resumo expandido
- A figura da prostituta tem sido historicamente mobilizada em um jogo ontológico e representacional para talhar, por oposição, a feminilidade almejável – fundamental às necessidades produtivas e reprodutivas do capitalismo, como lembra Silvia Federici (2017) – que precisa de exclusões para se edificar (Butler, 2019). Ela habita o terreno das identificações pavorosas, um “space-off” (De Lauretis, 2019) do quadro da vida, personificando uma corporalidade traumática tão temerosa, quanto necessária. A prostituição, uma prática abjeta (Creed, 2007), instaura limites: não se deve cruzar o limiar da monstruosidade e das aberrações.
Contudo, um chamado “cinema de mulheres”, insurgido a partir dos anos 1970 de Norte a Sul Global, assumiu tal risco. Sobretudo no campo do documentário de curta-metragem, observou-se a formação de “alianças insólitas” (Galindo, 2021) e profícuas entre diretoras feministas – de diferentes tradições de cinema e luta – e prostitutas, que também começavam a se organizar (Gusman, 2024).
Dito isto, algumas realizadoras lograram ocupar, à época, o impenetrável baluarte da ficção e forjar outras maneiras de se falar de monstros. Mais ou menos enlaçadas em questões formuladas pelos feminismos que estavam em pleno vigor, diretoras como Chantal Akerman, Marleen Gorris e Lizzie Borden distanciaram-se do cinema referencial de cunho militante e intervencionista, buscando, para além do tema, arrojar-se em proposições formais.
Muito já foi escrito sobre “Jeanne Dielman” (1976). A obra mais conhecida de Akerman, com seus enquadramentos fixos, frontais, intensificadores da duração prolongadas dos planos, provoca uma outra condição de olhar para a vida privada. Nessa oscilação desnaturalizante, eventos dramáticos ou não dramáticos do cotidiano ordinário de uma dona de casa, que exerce o trabalho sexual durante a noite, são representados equivalentemente, articulando concepções de mulheridade aparentemente antagônicas. Um esforço similar está presente em “Working Girls” (1986), terceiro filme da realizadora estadunidense Lizzie Borden. Mantendo os matizes do cotidiano, as delimitações temporais e espaciais e a prevalência dos “restos narrativos” (Margulies, 2016) observados no filme de Akerman, “Working Girls” se passa durante um dia de trabalho de Molly, uma fotógrafa lésbica que cumpre dois turnos semanais como garota de programa.
Já “Broken Mirrors” (1984), segundo longa da holandesa Marleen Gorris, se distingue entre esse conjunto por desbravar outros caminhos para redesenhar os contornos da abjeção feminina. Acionando alguns elementos do cinema de gênero – particularmente do thriller policial – a obra traça duas linhas narrativas paralelas: por um lado, acompanhamos uma figura masculina, jamais revelada pelos enquadramentos da câmera, que persegue e mata donas de casa de classe média, registrando, em polaroides, todo o processo de deterioração de suas vítimas encarceradas; por outro, num dia a dia trabalhista um pouco mais vibrante do que o de “Working Girls”, conhecemos as dinâmicas laborais e afetivas do Happy House Club. O filme tem uma qualidade metalinguística ao examinar a função das imagens na perpetuação de violências mais ou menos corriqueiras, que atingem, indistintamente, esposas e putas, em mais um achegamento dessas feminilidades opostas. Com uma mise-en-scène estilizada, teatral, quase fantástica, “Broken Mirrors” traz suas subjetividades para o primeiro plano, relegando – e aqui parece estar o seu grande giro representativo – a alteridade abjeta e monstruosa aos homens.
Neste artigo, pretendemos, então, analisar a construção de uma monstruosidade crítica em “Broken Mirrors” à luz das discussões mais recentes de Barbara Creed (2022). Investigaremos como essa obra singular – cujo acesso permanece difícil em nosso país – vislumbra, nos termos de Teresa de Lauretis (1987), uma “estética feminista”, que necessariamente interpela suas audiências a partir da materialidade de seus corpos, medos e desejos.
Bibliografia
- BUTLER, J. Corpos que importam: os limites discursivos do sexo. São Paulo: n-1, 2019.
CREED, B. The Monstrous-Feminine: Film, Feminism, Psychoanalysis. Nova York: Routledge, 2007.
CREED, B. Return of the Monstrous-Feminine: Feminist New Wave Cinema. Nova York: Routledge, 2022.
DE LAURETIS, T. Technologies of gender: Essays on Theory, Film and Fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1987.
DE LAURETIS, T. A tecnologia de gênero. In: HOLLANDA, H. B. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 121-155.
FEDERICI, S. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
GALINDO, M. Cara de Puta. Eco-pós, v. 24, n.1, 2021.
GUSMAN, J. Prostitutas, feministas e as alianças insólitas no cinema de mulheres (1977-19940. Doc-Online: Revista Digital de Cinema Documentário, n.35, p. 59-76, 2024.
MARGULIES, I. Nada acontece: O Cotidiano Hiper-realista de Chantal Akerman. São Paulo: Edusp, 2016.