Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Milene Migliano Gonzaga (UFRB)

Minicurrículo

    Professora em Cinema e Audiovisual na UFRB, é do Grupo de Estudos em Experiência Estética: Comunicação e Arte, da mesma universidade. Integra a Associação Filmes de Quintal, em MG e investiga práticas contra-hegemônicas ativistas, transfeministas, marginais, sempre em contextos urbanos, inclusive na internet. É pesquisadora do Juvenália: questões estéticas, geracionais, raciais e de gênero em comunicação e consumo da ESPM/SP e do GT Infâncias e Juventudes da CLACSO.

Ficha do Trabalho

Título

    Dança envolvente, ficção visionária, fabulação cuir: elos entre mundos

Seminário

    Tenda Cuir

Formato

    Presencial

Resumo

    Os olhos e ouvidos se comovem com o que tem diante de si. O corpo se retesa inteiro. A pele se eriça, dos pés sobe um impulso que prenhe de muito, preenche em completude pernas, os joelhos relaxam, como se repousassem onde sempre estiveram. Nas coxas a energia do impulso e sua capilaridade energética recobre a extensão da pele em contato com a cadeira, o ar, a roupa. As mãos procuram mais sentidos nos entremeios da pele instigada. Na tela a dança me encanta e faz sentir tantos jeitos de existir.

Resumo expandido

    Proponho a pesquisa para a apresentação entre quatro filmes que têm como protagonistas corpos vibrantes. De mulheres e homens cis, trans, negras, indígenas, não-bináries que em suas trajetórias reinventam os usos de/e seus corpos periféricos. Afeita a uma submetodologia indisciplinada (MOMBAÇA, 2016; BRANDÃO; LIRA, 2020), parto de cenas dos filmes para construir uma cartografia dos afetos em trânsito entre os corpos audiovisuais em dança e o meu corpo encarnado de pesquisadora implicada, interessada na dimensão do fazer sentir, mais do que fazer sentido.

    As narrativas exploram as liminaridades criativas (MIGLIANO, 2021) entre documentário e ficção que compreendo comporem ficções visionárias (IMARISHA, 2016) pois fabulam outras espacialidades desde sua vivência cotidiana subalternizada, mas não por isso menos mágica. Tais fabulações se realizam desde o que venho chamando de uma ética da reparação (KILOMBA, 2019) reinscrevendo o lugar das personagens em um protagonismo que atualiza as suas potências de vida, há tanto violentadas e invisibilizadas.

    Na contiguidade do entendimento da fabulação de uma ética da reparação, os quatro filmes acionam cenas de dança que situam a dimensão de encantamento dos corpos no presente que tem, suas materialidades, singularidades, potências e desacordos com o padrão.
    Entre as situações a serem debatidas, a dança é compreendida como performance de fuga do controle.

    Em “À Margem do Universo”, de Tiago Esmeraldo, (17’,2018), a nave especial que pousa na terra se comunica em Suruwahá, língua indígena pertencente a um grupo de pouco mais de 140 pessoas à epoca. Adawá, a unidade exploratória perde a conexão com a nave e em uma noite estrelada compartilha o que tem sentido ao poder decidir se acata ou não acata as ordens enviadas, bem como o regozijo ao de repente, tomar outros caminhos.

    Em “Abjetas 288”, de Júlia da Costa e Renata Mourão (20’, 2019), após uma luta corporal entre as protagonistas e o policial, ambas se refugiam em ruínas onde em uma dança experimental se cuidam e se confortam antes de retomar a jornada em busca da cidade que desejam habitar, Aqui, neste sci-fi musical ambientado em Aracaju.

    Em “Heroica Dreams”, de Marvin Pereira, (7’, 2021), a dança abre os caminhos do filme: dois corpos na beira do rio, se enredam em um jogo dançado na paisagem que conta com uma árvore seca no fundo. A som de mata e rio, como em um xirê de Orixás, os corpos experimentam passos que os conectam à ancestralidade e a demanda de seguir, pois muitos seguiram, e agora é sua vez. Heróica é como é conhecida Cachoeira, que em seus sonhos brilha resistência e existência dos corpos que tanto foram subjugados.

    Em “Mato seco em chamas”, de Adirley Queiróz e Joana Pimenta (253”, 2022) um baile funk em um ônibus mobilizam os corpos em suas singularidades festivas que na sequencia seguinte se desfaz ao desvelar todas aquelas mulheres de branco, escoltadas por policiais que as conduziam como presidiárias: sonho de futuro, especulação do passado, presente compartilhado.

    A dança em cena e a desobediência ao controle narrado nas ficções especulativas aqui referenciadas me afetam e me estimulam a sentir e saber de mim. Traumas coloniais não faltam para as corporeidades existentes na pindorama brasileira.

    Os filmes, remontados em uma leitura que eriça os pelos e atiça os dedos, acionam um desejo de reconhecimento de si, de desdobramento do que há sem o controle urbano, patriarcal, patronal, moral, societal, racial, etário, de gênero, sexualidades. Ao me colocar para sentir em suas performances cinematografadas e coreografadas, ativam uma potência de cura que emerge no texto elaborado em voz, letras em lógica crítica, mas sobretudo em dança, dança sentida, dança cuirificada e reelaborada a cada nova visionagem destas imagens. Para a Tenda Cuir, espero poder compartilhar este fazer sentir em força crítica dos filmes que transpõem os traumas, costurando potências, imaginações, extrapolando as amarras e entraves.

Bibliografia

    BRANDÃO, Alessandra; LIRA, Ramayana. Inventário de uma infância sapatão em um mundo de imagens. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 03, n. 09, 2020, p. 121-137.

    IMARISHA, Walidah. Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. Tradução de Jota Mombaça, Issuu, 2016.

    KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

    LE GUIN, Ursula k. A teoria da bolsa ficção. São Paulo: n-1 edições, 2021

    MESQUITA, Claudia. As lendas das gasolineiras: entre o vivido e o imaginado. In: Catálogo do forumdoc.bh.2022 – Festival do Filme Documentário de Belo Horizonte, Fórum de Antropologia e Cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2022.

    MIGLIANO, Milene, SANTOS, Thiago H. R. Um sopro de cura: fruição estética e afetação em corpos audiovisuais para cuidar de traumas coloniais. Rebeca. v.9, p.119 – 140, 2021

    MOMBAÇA, Jota. “Rastros de uma submetodologia indisciplinada”. Concinnitas, v. 1, n. 28, 2016, p. 341-354.