Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Mili Bursztyn de Oliveira Santos (UFF)

Minicurrículo

    Realizadora audiovisual. Possui graduação em Comunicação Social – Radialismo (2010) e mestrado (2017) em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense.

Ficha do Trabalho

Título

    Dar a ver o silêncio: o fragmento como estética da urgência

Mesa

    Inventar, escavar, transgredir: produção de memória no audiovisual

Formato

    Presencial

Resumo

    Uma análise comparativa do conto “Alguma Coisa Urgentemente” (1980), de João Gilberto Noll e do filme “Nunca Fomos Tão Felizes” (1984), de Murilo Salles, a partir das noções de estética do fragmento (Renato Lessa) e de trauma experimentado enquanto um esfacelamento da experiência (Benjamin e Primo Levi).

Resumo expandido

    “Alguma Coisa Urgentemente” (1980), de João Gilberto Noll, se passa no Brasil na primeira década após o golpe de 1964. No conto, narrado em primeira pessoa, um jovem abandonado quando bebê pela mãe é brutalmente separado do pai na infância, depois que este é preso por atividades subversivas, em 1969. Ele sabe o que motivou a prisão do pai, mas entende que deve se calar: “Como lidar com uma criança que sabe?” (NOLL, 1980, p. 12). Um dia o pai surge irreconhecível: lhe falta um braço. Pouco resta do homem que gostava de passear com o filho e ensinar sobre árvores. Logo o jovem perceberá que a mutilação não é apenas física, mas emocional: o pai voltou em silêncio. O retorno do combatente faltando um pedaço é simbólico. Ao narrar a progressiva degradação física e moral de pai e filho, Noll aborda a violência e a crise moral daqueles tempos.
    Em “Experiência e pobreza”, Walter Benjamin (1985, p. 115) comenta a degeneração dos soldados regressos dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial (1914-18): “mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos”. Para Benjamin, a Grande Guerra representou um divisor de águas. Em “O Narrador”, Benjamin (1985, p. 198) retoma a imagem dos “combatentes que voltam mudos do campo de batalha”, relacionando-a a morte do narrador, fenômeno social que ele associa ao desaparecimento gradual da “faculdade de intercambiar experiências”. No conto, Noll evidencia isto na transformação do pai, que remete a uma perda de mundo que tem suas origens no golpe de 1964 e se intensifica com o AI-5 de 1968.
    “Nunca Fomos Tão Felizes” (1984) é um filme livremente inspirado em “Alguma Coisa Urgentemente”. Dirigido por Murilo Salles, foi produzido no contexto de redemocratização e se passa em 1972, momento de recrudescimento da ditadura durante o governo do Gal. Médice. A escolha por ambientar o filme neste contexto histórico reflete o desejo do diretor de falar da experiência de sua geração, que testemunhou o golpe de 1964 na infância e cresceu sob o jugo do regime. Gabriel é um menino órfão de mãe criado por padres em um colégio interno. O pai, opositor político da ditadura, foi preso. Passados oito anos, Beto retorna para buscar o filho e viver com ele no Rio de Janeiro. Tão logo instala Gabriel em um apartamento com vista para o mar de Copacabana, Beto avisa que irá partir: “Seria muito arriscado para você eu ficar por perto. Mas eu vou estar sempre em contato com você. Isso aqui é só uma solução provisória”. Sem os meios necessários para compreender a condição de clandestinidade do pai, Gabriel irá experimentar seus sumiços como sucessivos abandonos e se ressentirá disto.
    A sensação de abandono liga o conto de Noll ao filme de Salles. Em declaração sobre o filme, Noll (1984, p. 2) aponta a sensação de abandono como o “nervo comum” entre as obras, “a herança histórica daquele filho da classe média brasileira mais esclarecida, lá pelos anos 70, sem instrumentos para captar o sentido da interditada ação paterna”. Salles (1988, p. 8), por sua vez, reconhece em Noll “um cara que escreve do jeito que eu penso as imagens”.
    O abandono tal como tematizado por Noll e Salles só se dá a ver como silêncio. Já dizia Manoel de Barros (2013, p. 9): “Difícil fotografar o silêncio”. Noll e Salles o fazem por meio de uma estética do fragmento. No conto, ao lançar mão da narrativa em primeira pessoa, fragmentada, Noll reproduz o senso de urgência característico dos testemunhos. Em É Isto Um Homem?, Primo Levi (1997, p. 07-08) defende o caráter fragmentário do livro como expressão da urgência de seu testemunho sobre a experiência de Auschwitz: “seus capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência”. A partir de Levi, Renato Lessa (2008, p. 16) define uma estética do fragmento como um estilo que “permite que o narrador mostre, mais do que explique”. Não seria justamente esta a função da fotografia no filme de Salles? Mostrar o abandono de Gabriel na angústia de seus gestos, mais que explicá-lo.

Bibliografia

    BARROS, MANOEL. Ensaios Fotográficos. São Paulo: LeYa, 2013.
    BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política (v. 1). São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.
    LEVI, Primo. É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
    LESSA, Renato. O Silêncio e sua Representação. Rio de Janeiro: Edição Laboratório de Estudos Hum(e)anos – Online, Setembro 2008.
    NOLL, João Gilberto. “Filmes Jovens Em Gramado”. Jornal do Brasil Carderno B, Rio de Janeiro, p. 2, 12 de abril de 1984.
    NOLL, João Gilberto. “Alguma coisa urgentemente”. In: NOLL, João Gilberto. O cego e a dançarina. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980.
    SALLES, Murilo. “Diretores Estreantes”. In: Filme e Cultura n.48, nov. 1984, p. 4-13.