Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Marcel Gonnet Wainmayer (PPGCV)

Minicurrículo

    É Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense – PPGCine-UFF (2020). Possui Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense – PPGCOM-UFF (2017). Possui Licenciatura em Jornalismo – Universidad Nacional de Lomas de Zamora, Argentina (2004). Integrante da Asociación de Documentalistas Argentinos (DOCA) e de Directores Argentinos Cinematográficos (DAC).

Ficha do Trabalho

Título

    O artesão e os marmelos: sobre um filme de Víctor Erice

Formato

    Presencial

Resumo

    O filme El sol del membrillo (Espanha, 1992), realizado por Víctor Erice, retrata a experiência do pintor espanhol Antonio López García, os métodos, as tentativas e os fracassos do artista ao dedicar-se a registrar as mutações da realidade. O filme encarna um processo de “consciência sobre os materiais”, nos termos propostos por Richard Sennett, e sugere também uma reflexão sobre os aspectos artesanais que podem ser encontrados no cinema.

Resumo expandido

    Numa das primeiras cenas do filme El sol del membrillo (Espanha, 1992), realizado por Víctor Erice, o pintor espanhol Antonio López García, depois de minuciosos preparativos, encontra-se pela primeira vez com o pincel na mão. López divide a sua atenção entre a tela e o seu modelo vivo: uma pequena árvore de marmelo, repleto de grandes frutos amarelos. Ele molha o pincel na tinta branca e parece que vai começar a pintar na tela, mas subitamente o pincel dirige-se a uma das folhas da árvore. Depois a uma das frutas amarelas. Depois ao tronco. O pintor desenha linhas brancas em toda a árvore. No plano seguinte, traça uma linha grosa com seu tubo de tinta nos muros do pátio e até desenha raias e cruzes brancas em outras plantas ao seu redor. López delimita assim o seu mundo, e tenta fixar a trajetória do tempo sobre essa árvore e sobre os seus voluptuosos frutos amarelos.
    Mas El sol del membrillo também exibe marcas do processo criativo do diretor e do tempo do próprio filme (marcas do registro da cena, marcas de produção, que se transformam em marcas do processo produtivo ainda aparentes na montagem final), que parecem incompatíveis com a estandardização “profissional” do cinema industrial e permitem identificar alguns “desajustes” da cena, como indícios de uma forma “artesanal” de cinema.
    Se o termo “artesanal” muitas vezes foi utilizado para desqualificar filmes e expressões que iam por fora do sistema industrial, é mais difícil encontrar nos estudos de cinema o significado metodológico do termo artesanato, relativo à história dos procedimentos de criação manual e as suas implicações culturais, tal como é proposto por Richard Sennett, no seu livro “The Craftsman”. Neste livro, Sennet percorre a teoria sobre as práticas artesanais e recupera as propostas do movimento Arts&Crafts, que procurava eliminar as fronteiras entre arte e artesanato.
    Em El sol del membrillo, essas marcas trazem a presença dos materiais que rodeiam e compõem o processo produtivo, marcas que podem ser encontradas tanto no filme de Erice como nos quadros de López. Existe, segundo Sennett, um processo de “consciência sobre os materiais” que se encontra no trabalho do artesão (e do artista). Trata-se de um processo de engajamento que se dá de três formas: a primeira é a metamorfose, isto é, mudança e transformação, mas sobretudo no que denomina “mudanças de domínio” relacionadas a novos usos que o artesão dá às ferramentas e aos materiais. A segunda é a presença, isto é, justamente as marcas de identificação que o artesão imprime sobre seu trabalho (aquele tijolo medieval onde diz “eu fiz isto!”). E a terceira é a antropomorfose, que confere às coisas qualidades humanas, isto é, atribui “qualidades da ética humana – honestidade, modéstia, virtude – a materiais, [o que] não tem por objetivo explicar, se não aumentar nossa consciência dos próprios materiais e assim levar-nos a pensar sobre o seu valor” (SENNETT, 2009, p. 156).
    O trabalho de López transita por esses três estados: a metamorfose, na obsessão do pintor pela realidade mutável da árvore; a presença, no método com que o artista “marca” esse espaço, com linhas, cruzes e traços sobre a árvore e as suas frutas; e a antropormorfose, nos sentimentos e metáforas que deflagra a pintura, com a natureza morta dos marmelos podres e um sonho da infância que relata López.
    No filme de Erice, a câmera também percorre os três estados: registra as transformações do espaço, se apresenta em cena como um personagem por direito próprio e até pretende tomar o lugar do pintor no final do processo, ocupando justo o espaço dos seus pés, junto às estacas que López colocou no chão.
    O filme sugere uma reflexão sobre os aspectos artesanais que podemos encontrar no cinema. Este duplo olhar entre pintura e cinema, entre arte e artesanato, se reflete na lenta evolução dramática do filme, e na disputa sobre o ponto de vista: o nosso desejo (e o desejo do diretor) de ver pelos olhos do pintor, de compartilhar a sua experiência.

Bibliografia

    AROCENA, Carmen. Víctor Erice. Madrid: Cátedra, 1996.
    BRATU HANSEN, Miriam. Cine y Experiencia. Siegfried Kracauer, Walter Benjamin y Theodor W. Adorno. Trad. Hugo Salas. Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2019.
    EL SOL del membrillo. Direção de Víctor Erice. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (134 min).
    JAMESON, Fredric. O método Brecht. Coleção Zero à Esquerda. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
    KLUGE, Alexander e NEGT, Oskar. History and Obstinacy. New York: Zone Books, 2014.
    RUIZ, Raúl. Poéticas del Cine. Tradução de Alan Pauls. Santiago de Chile: Ediciones UDP, 2013.
    SENNETT, Richard. The Craftsman. New Haven: Yale University Press, 2008.