Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Maria Ines Dieuzeide Santos Souza (UFC)

Minicurrículo

    Maria Ines Dieuzeide é professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará. É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG, onde desenvolveu tese sobre as formas políticas do cinema de Elia Suleiman. É uma das coordenadoras do Laboratório de Estudos e Experimentação em Artes e Audiovisual – LEEA (CNPq-UFC), e pesquisa cinema, exílio e outros deslocamentos da e na imagem.

Ficha do Trabalho

Título

    À distância, ver o que não se mede – sobre trabalhos de Basma Alsharif

Formato

    Presencial

Resumo

    Este trabalho tece algumas considerações a respeito de três curtas realizados pela artista palestina Basma Alsharif: We Began by Measuring Distance, Home Movies Gaza e A Field Guide to the Ferns. Com esses filmes (reunidos pela curadoria da 3ª Mostra de cinema árabe feminino), nos interessa pensar como a montagem de imagens de procedências e suportes diversos, atravessadas por sons também de naturezas variadas, pode propor uma visualidade espessa, instável e estranhada para a Palestina.

Resumo expandido

    Em fevereiro de 2023, fui apresentada à cineasta palestina Basma Alsharif, a partir de um conjunto de 3 curtas reunidos pelas curadoras da 3ª Mostra de cinema árabe feminino: We Began by Measuring Distance (Nós Começamos Medindo Distâncias, 2009), Home Movies Gaza (Filmes Caseiros Gaza, 2013) e A Field Guide to the Ferns (Um Guia de Campo das Samambaias, 2015). Instigada por essa curadoria, tento elaborar, neste trabalho, a percepção de um estranhamento construído nesses filmes: a produção, no espectador, de uma sensação de que algo talvez esteja fora do lugar.

    Alsharif nasceu de pais palestinos no Kuwait, e vive entre a Europa, os Estados Unidos e o Oriente Médio. Nos três curtas reunidos aqui, imagens de procedências e suportes diversos (gravações caseiras, arquivos de televisão, filmes, sínteses digitais…) se sobrepõem, se contrapõem, se fundem, atravessadas por sons também de naturezas variadas (narrações, murmúrios, manifestações, músicas…), que impõem deslocamentos e distâncias, propondo uma visualidade espessa, instável e estranhada para a Palestina.

    Em We Began by Measuring Distance, nos deparamos com a narração de uma história não linear, contada por meio de repetições, camadas e atravessamentos. Não há medida possível para a distância entre Israel e Palestina. Não há o que contar em números, ou medir em quilômetros. O que resta à obra é estabelecer a distância imensurável, trabalhar com ela e apesar dela. O que há é o espaço e o tempo do filme, um material que Alsharif pode manipular, recompor, decompor, não para dar a medida da distância, mas para inventar uma forma de partilhar a experiência dessa distância.

    Em Home Movies Gaza, o título do filme poderia sugerir gravações caseiras que retratassem o cotidiano, mas a montagem torce essa ideia: há o espaço e o tempo do cotidiano, mas eles não se mostram de modo transparente ou direto. Ao contrário. Depois de percorrer ruas, entramos em uma casa e ficamos com uma senhora, diante de uma janela, em contraluz. Uma voz feminina começa a narrar a história de O senhor das moscas, livro de William Golding. Na imagem, as palavras narradas em árabe são inscritas em inglês, no centro do quadro. Outras sobreposições vão surgindo, e vemos a praia no corpo em contraluz dessa mulher, de quem não conhecemos o rosto. Na trilha sonora, uma voz masculina é adicionada narrando o mesmo texto, com uma toada ligeiramente distinta. Encontro e desencontro.

    Em A Field Guide to the Ferns, Alsharif não vai a Gaza para filmar. Enquanto ela está no interior dos Estados Unidos, Israel promove um violento ataque militar sobre a Faixa de Gaza, e são as imagens desse ataque que chegam à diretora – e a nós – por meio da tela do computador. Nessa mesma tela, vemos um homem que coloca fogo em construções de palha de indígenas, no meio da floresta. São trechos apropriados do longa-metragem Holocausto Canibal (1980), de Ruggero Deodato. Num movimento circular da câmera, as imagens do longa se encontram com aquelas do ataque aéreo à Faixa de Gaza, que remetem às das bombas que iluminam a noite que encerra o primeiro curta. A personagem sobe as escadas em reverso e se deita, e talvez sonhe com um fundo do mar que se funde com a noite palestina, essa que tem múltiplas camadas e só pode ser vista à distância, com estranheza, fora de lugar.

    No prefácio do livro Dreams of a Nation (2006), Edward Said nos diz que “a relação de palestinos com o visível e o visual era profundamente problemática. De fato, toda a história da luta palestina tinha a ver com o desejo de ser visível” (SAID, 2006, p. 2). Aqui, Basma Alsharif parece mostrar que há, sim, uma visualidade para essas pessoas, mas essa visualidade não é facilmente resolvida, alcançada, resumida. Ela não pode ser a imagem da violência, da expropriação ou da guerra, mas também não será a do transcorrer tranquilo dos dias. Uma imagem que é de destruição, mas que é também da invenção da vida em um território que é e não é daquelas pessoas que o habitam.

Bibliografia

    ABU-LUGHOD, J.L. Palestinians: exiles at home and abroad. Current Sociology 36, n. 2, summer 1988, p. 61–69.
    BAMBIRRA, Analu et al (org.). 3ª Mostra de cinema árabe feminino [livro eletrônico]. Belo Horizonte, MG: Partisane Filmes, 2023.
    BUTLER, J. Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2017.
    SAID, Edward. Preface. In: DABASHI, Hamid (Ed.). Dreams of a Nation. Nova York: Verso, 2006. p. 1-5.