Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Olívia Érika Alves Resende (UFRJ)

Minicurrículo

    Doutoranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); graduada e mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Produtora, diretora e roteirista audiovisual no Centro de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedecom – UFMG).

Ficha do Trabalho

Título

    Os engendramentos curativos das imagens agentivas de Michele Kaiowá

Seminário

    Cinemas decoloniais, periféricos e das naturezas

Formato

    Presencial

Resumo

    Investigo vídeo-cartas de Nhemongueta Kunhã Mbaraete (2020) produzidas por Michele Kaiowá, a fim de perceber como as imagens da cineasta manifestam o desejo de “inventar o que fazer” durante a pandemia de covid-19. Defendo que o gesto fílmico de Michele, ao ativar implicações ontológicas inventivas de “engendramentos” (LATOUR, 2021), expressa uma abertura agentiva da câmera e uma potência fílmica criativa e curativa, de sobrevivência e de “supervivência” (RIVERA CUSICANQUI, 2018) com as imagens.

Resumo expandido

    Em 2021, durante o Seminário Temático “Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos” da Socine apresentei minha pesquisa que tematiza as vídeo-cartas de “Nhemongueta Kunhã Mbaraete” ¬ (Conversa entre mulheres guerreiras) – projeto desenvolvido durante a pandemia de covid-19 por Graciela Guarani, Michele Kaiowá, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro. Na ocasião, destaquei aspectos gerais das produções que demandavam extrapolar teorias convencionais de representação para perceber o cinema enquanto operador de reconfigurações espaço-temporais e de contaminações afetivas entre ontologias. A reflexão sobre essa dinâmica criativa entre mulheres e imagens foi baseada no conceito de corpo, tal como concebido pelo perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro (2018) e em afinidades com o pensamento de Sandra Benites (2018).

    Para a presente edição do ST, busco adensar a reflexão com uma abordagem mais específica dessa potência relacional e transformacional do cinema, a partir das vídeo-cartas de Michele Kaiowá. Nas correspondências em vídeo, a cineasta expressa o desejo de filmar como um modo de “inventar o que fazer” durante a pandemia, uma vez que, segundo ela, a política de isolamento restringiu o trânsito dos parentes Kaiowá na Aldeia Panambizinho, localizada na região de Dourados (MS). Defendo que esse “desejo de invenção” orienta o gesto fílmico de Michele e ativa uma abertura proliferadora de implicações ontológicas, provocando uma reflexão sobre a potência agentiva das imagens da cineasta.

    A realização das filmagens fomenta e passa a integrar o preparo de receitas e rituais ancestrais, processos estes que são desenvolvidos a partir de relações diversas entre seres que integram o cotidiano da Aldeia. Em Conversas n.1, primeiro episódio de Nhemongueta, a câmera de Michele, ao participar do preparo da “chicha”, se desloca pela plantação de milho e sugere uma série de interseções entre a pele feminina, a carne do milho e a película imagética. Em Conversas n. 2, o processamento da tintura “Uruku Jygue”, feita a partir do urucum, ativa a transformação das sementes cujo vermelho-sangue se inscreve nos corpos, potencializa a reza e demarca a tela, interconectando subjetividades férteis, cheias de vida.

    As filmagens produzidas pela cineasta convidam a perceber a câmera como propulsora de “engendramentos”, ou seja, como abertura para deslocar fronteiras e compor com outros corpos. Segundo Bruno Latour (2021) o engendramento, processo fundamental para biodiversidade, é um artifício de invenção que se realiza a partir da bricolagem entre “holobiontes”, sendo estes agentes de contornos imprecisos e que não podem ser individualizados, já que vivem em relação de interdependência. Essa dinâmica de engendramentos afetivos é contida de uma potência feminina, não por uma suposta capacidade reprodutiva, mas justamente porque não se processa por semelhança e sim pela sensibilidade de fazer proliferar diferenças que, ao mesmo tempo, se acolhem, se espalham, se sobrepõem e se tornam outras.

    O gesto fílmico polinizador de engendramentos é percebido nas vídeo-cartas a partir da própria implicação da câmera com o território. As imagens, ao deslocarem coordenadas espaciais tradicionais, aparecem como membranas permeáveis a diferenças, criando uma tessitura de concatenações e parentescos não-genéticos, ainda que visualmente invisíveis na tela. O desejo de invenção de Michele desencadeia um exercício de reativação de temporalidades e espacialidades que compõem a Aldeia, um processo que Silvia Rivera Cusicanqui (2018, p.73) nomeia como “supervivência”, ou seja, uma forma criativa e curativa de praticar um viver orgânico e não-disciplinar, uma maneira de reinvenção de um corpo por se fazer: “ modo de pôr o corpo, fazê-lo em um entorno de comunidades de afetos, que talvez se irradiarão para fora e se conectarão com outras forças e iniciativas, longe da competência e das estratégias do ‘êxito’.”

Bibliografia

    BENITES, Sandra. 2018. Viver na língua guarani Nhandewa (mulher falando). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    LATOUR, Bruno. Onde aterrar?: lições do confinamento para usos dos terrestres. Tradução: Raquel Azevedo. 1 ed. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2021.

    NHEMONGUETA Kunhã Mbaraete. 2020. https://ims.com.br/convida/michele-kaiowa-graciela-guarani-patricia-ferreira-para-yxapy- sophia-pinheiro/

    RIVERA CUSICANQUI, Silvia. 2018. Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón.

    VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2018. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. 1ª ed. São Paulo: Cosac Naify.