Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Nicholas Andueza (UFRJ e PARIS 1)

Minicurrículo

    Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e Doutor em História pela Paris 1 – Panthéon Sorbonne (co-tutela), tendo recebido bolsas CNPq e CAPES. Editor-assistente da revista Eco-Pós. Além de artigos diversos nas áreas de Comunicação e Cinema, escreve também críticas e artigos sobre artes plásticas para a Revista DASartes. No audiovisual é montador, pesquisador e câmera.

Coautor

    Alexandre Wahrhaftig (USP)

Ficha do Trabalho

Título

    Dança do arquivo: notas sobre repetição e violência em “Tekoha”

Seminário

    Cinema experimental: histórias, teorias e poéticas

Formato

    Presencial

Resumo

    Em “Tekoha” (2022), Carlos Adriano retoma imagens feitas por membros do povo Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul em 2021-22. Eles registram práticas criminais por agentes privados que ateiam fogo em casas e os ameaçam. O filme fragmenta e repete as imagens; retrabalha visualmente a violência desses arquivos. Tais procedimentos, em diálogo com um certo cinema experimental, habilitam o próprio cinema como ritualística do arquivo, desviando esse meio, em parte, de suas funções colonialistas.

Resumo expandido

    “Tekoha” (2022), de Carlos Adriano, é um curta-metragem que retoma imagens feitas em 2021 e 2022 por membros da etnia Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Por meio de seus celulares, eles registraram incêndios de casas e ameaças com armas de fogo, crimes cometidos por seguranças privados e grupos fundamentalistas evangélicos. As imagens são feitas com alguma distância física dos eventos; algumas delas, inclusive, estão imersas no breu quase total da noite. A relativa distância, o registro tremido, a pouca visibilidade e os gritos demonstram com clareza a urgência e o risco real sofrido pelas pessoas ali presentes.

    Diante de tais imagens, tão violentas, tão imediatas mas ao mesmo tempo tão lacunares, o filme propõe fragmentações brutais: justaposições, pausas, repetições, cruzamentos transtemporais com outros registros – gravações de cantos Ñengary Guarani Kaiowá (2000), filmagens de Dina e Lévi-Strauss (1935) e do Major Thomaz Reiz (1932). O complexo jogo da montagem com o arquivo faz explodir a polissemia das imagens, mantendo clara, contudo, a infeliz linha guia dos genocídios indígenas. Sem ser fetichizado ou usado como ilustração, o material registrado pelos Guarani Kaiowá é ostensivamente trabalhado, retrabalhado, colidido com outros arquivos, em proposições formais rigidamente estruturadas, sobretudo a partir de repetições. Na primeira parte, por exemplo, o plano sequência de dois minutos de um dos ataques é apresentado por curtos segmentos desmembrados de poucos fotogramas, mostrados sempre de forma repetida, duas, três ou quatro vezes cada um. Mais adiante, uma mesma imagem vista no início é retomada com outro acompanhamento sonoro e, em seguida, ela ainda é repetida em flashes entrecortados com outro registro.

    A repetição é um procedimento muito presente na filmografia de Carlos Adriano, bem como na história do cinema experimental. Desde “Balé Mecânico” (1924), de Léger e Murphy, passando por obras do cinema estrutural, até trabalhos mais recentes como os de Martin Arnold, encontramos diferentes formas pelas quais o cinema buscou desarticular e rearticular seu suposto fluxo linear através da repetição. Nossa hipótese é de que “Tekoha” busca, através principalmente da repetição, mas não só, elaborar um ritual de imagens e sons, uma dança ritualística do arquivo.

    O filme sugere-nos essa leitura quando, no início, insere uma epígrafe de Krenak relatando que alguns povos indígenas dançam para suspender o céu quando ele vem a pesar. Ao final, numa sequência apenas com o som (repetitivo) dos cantos-rezas Ñengary, a moldura-ritual se fecha. Não propomos que Carlos Adriano tente imitar rituais indígenas, mas sim que destaque uma possibilidade ritualística e decolonial do próprio cinema frente ao trauma; um contra-movimento, dado que esse meio foi criado e inicialmente desenvolvido em nações colonizadoras. Para Lévi-Strauss (2011), todo ritual se vale de fracionamento e repetição: os menores detalhes fazem diferença e, simultaneamente, repetem-se os mesmos enunciados ou gestos exageradamente. Não estamos longe de uma descrição da montagem de “Tekoha”.

    Essa forma filme-ritual é profundamente crítica na sua desarticulação de uma experiência audiovisual focada na explicação, no conhecimento racional, esse saber-poder que funda o cinema como instrumento da colonização – donde os travelogues, os registros dos “exóticos”, segundo o eurocentrismo. Em “Tekoha” a repetição não nos faz conhecer (e portanto possuir) mais; ela nos ataca, nos desarticula, nos faz perder, nos move (DIDI-HUBERMAN, 2010). “Tekoha” pode ser visto como parte de uma linha de cinema experimental que, diante de eventos que desafiam a representação, busca novas formas de construção temporal (SKOLLER, 2005). Ao amarrar uma noção ritual com certo cinema experimental de repetições, “Tekoha” desvia o meio cinematográfico de suas funções historicamente colonialistas, abrindo não uma “janela para o mundo”, mas um portal por onde traumas e vivências transitam.

Bibliografia

    DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.

    KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

    KAYAPÓ, Aline Ngrenhtabare Lopes, e KAYAPÓ, Edson Bepkro. Reencantando o mundo com a literatura indígena. Latin American Literature Today (LALT), 2021.

    LÉVI-STRAUSS, Claude. O Homem Nu (Mitológicas v. 4). Translated by Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

    ORTIZ, Rosalvo Ivarra e MACHADO, Almires Martins. “Principiologia jurídica, história e cosmologia guarani”. Abya Yala, Brasília, v.3, n.3, ago./dez., 2019.

    PRAK-DARRINGTON, Emmanuelle. Magies de La Répétition. Lyon: ENS Éditions, 2021. https://books.openedition.org/enseditions/16369.

    SITNEY, P. Adams. Visionary Film. New York/Oxford: Oxford University Press, 2002.

    SKOLLER, Jeffrey. Shadows, Specters, Shards: Making History in Avant-Garde Film. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005.