Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Guilherme Maia de Jesus (UFBA)

Minicurrículo

    Mestre em musicologia, doutor em Comunicação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA. Entre suas publicações estão os livros Elementos para uma poética da música dos filmes (Appris, 2015) e a co-organização das coletâneas Ouvir o documentário: vozes, música e ruídos (Edufba, 2015), e O cinema musical na América Latina: aproximações contemporâneas (Edufba, 2018).

Ficha do Trabalho

Título

    O vil barbeiro e as Sonatas de Beethoven

Seminário

    Estilo e som no audiovisual

Formato

    Presencial

Resumo

    Para contar a história de um homem medíocre e vil, que leva a esposa ao suicídio por ter sido condenada à prisão por um crime que ele próprio cometeu, Joel e Ethan Coen, em O homem que não estava lá (2001), optam por elementos da audiovisualidade noir. Na musicalização do filme, entretanto, os diretores elegem predominantemente seções intermediarias das Sonatas de Beethoven. Examinar hipóteses sobre o modo como essa decisão afeta a obra e a experiência de fruição é o objetivo desta comunicação.

Resumo expandido

    O filme “O homem que não estava lá” (Joel & Ethan Coen, 2001) conta a história de Ed Crane, um barbeiro conformado com uma vida medíocre de empregado do genro, dono da barbearia, e um casamento desprovido de respeito mútuo e afeto. Eu um confronto com Dave, patrão e amante de Doris, sua esposa, Crane mata Dave. Equivocadamente, Doris é condenada e presa pelo crime que o barbeiro cometeu, mas ele não confessa e ela acaba por cometer suicídio na prisão, antes que as investigações e o acaso conduzam ao verdadeiro culpado. Embora fortemente marcado por elementos da audiovisualidade noir (P&B, ambientes e rostos sombrosos, constante narração extradiegética), no que diz respeito à sua musicalização, contudo, o filme adota uma estratégia inusitada, ao optar por dar protagonismo a obras do repertório de concerto, com forte ênfase nas seções intermediárias e lentas das obras de Ludwig Van Beethoven.

    No exame de um conjunto de cerca de 30 obras emblemáticas do cinema noir clássico e moderno, utilizadas como corpus de controle na pesquisa que gerou essa comunicação, foram detectados projetos de musicalização que podem diferir na dimensão da instrumentação e até mesmo do gênero musical, mas que compartilham invariavelmente a estratégia de produzir, tal como a fotografia e a iluminação, sensações e atmosferas sombrias, pesarosas e desarmônicas, que aderem completamente às sensações e aos sentimentos que emanam do protagonista e da narrativa . Já as seções de sonatas da história de Ed Crane são, para usar expressões de Lewis Lockwood (2005), “um oásis emocional entre tempestades”, peças compostas com o objetivo de oferecer à apreciação um “consolo para a escuridão emocional” e para a turbulência amedrontadora dos movimentos adjacentes. Partindo de reflexões sobre o cinema noir (Saada, 2004; Silver & Ward, 1992), sobre usos e efeitos da música pré-existente no cinema (Alvim, 2020; Powrie e Stilwell, 2006) e do estudo de Lockwood (2005) sobre a recepção histórica de Beethoven, o filme dos irmãos Coen foi analisado tendo como objetivo examinar até que ponto a quebra desse elo invariável do noir entre áudio e visual afeta potencialmente a experiência de apreciação e nos revela algo sobre a natureza do protagonista que o filme quer entregar à fruição.

    Em síntese, o que a análise do projeto de musicalização do filme nos revela, para além do caráter raro e minuciosamente específico das escolhas, é uma instância poética bem informada, que, com muito bom humor, organiza a malha musical em um grau de imbricação com a narrativa audiovisual de sofisticado apuro formal e semântico. Não há pontas soltas nem ligações fracas: tudo faz sentido. A música, ademais, faz com que o filme seja percebido como uma dança lenta e envolvente; tinge de nobreza a história do homem vil; participa do quebra-cabeça intertextual; e oferece uma camada generosa de beleza clássica. Se, em alguns momentos raros, a música se dedica a expressar os sentimentos do personagem – como no caso da Sonata ao Luar após o suicídio de Doris -, na maioria dos casos ela parece se descolar de Ed para se dirigir à cognição e ao coração do espectador, contribuindo para que “o homem que não estava lá” seja perdoado por suas vilezas e guardado na memória como um nobilíssimo personagem da história do cinema, protagonista de um filme que, muito provavelmente, é o primeiro e único noir da História cujo ponto final visual é uma tela cem por cento preenchida pela cor branca, em conjunção com um acorde perfeito maior.

Bibliografia

    ALVIM, Luíza Beatriz. “Música preexistente, leitmotivs e retornos no cinema de Jacques Demy dos anos 1950 e 1960.”. In: Revista Contemporanea, v. 18 n. 1, 2020.

    LOCKWOOD, Lewis. Beethoven: a música e a vida. São Paulo: Códex, 2005. Tradução de: Beethoven: The Music and the Life (New York: W.W. Norton, 2003).

    POWRIE, Phil; STILWELL, Robynn. Changing tunes: the use of pre-existing music in film. Londres: Routledge, 2006.

    SAADA, Nicolas. “The noir style in Hollywood”. In: SILVER, Alain; URSINI, James (Orgs.). Film noir reader 4: the crucial films and themes. New Jersey: Limelight, 2004.

    SILVER, Alain; WARD, Elizabeth (Orgs.). Film Noir: An Encyclopedic Reference to the American Style. New York: Overlook, 1992.