Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Rodrigo Carreiro (UFPE)

Minicurrículo

    Rodrigo Carreiro é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Pernambuco, onde cursou Mestrado e Doutorado em Comunicação (Cinema). É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2, com pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense (RJ). Atua como vice-coordenador do GT Estudos de Som e Música da Compós. Pesquisa sobre sound design, processos criativos, recepção cinematográfica e cinema de horror.

Ficha do Trabalho

Título

    Deus e o diabo na terra da performance vocal

Seminário

    Estudos do insólito e do horror no audiovisual

Formato

    Presencial

Resumo

    Esta comunicação apresenta uma análise comparativa entre cenas dos filmes A Bruxa (The Witch, Robert Eggers, 2015) e Santa Maud (Saint Maud, Rose Glass, 2019) , focalizando a representação que os filmes fazem de Deus e do diabo, como seres sobrenaturais que aparecem dentro das histórias exclusivamente como vozes. O pricipal eixo conceitual da análise é a noção de performance vocal fragmentada (OPOLSKI, 2021), cunhada com base nos escritos de Goffman (1959) e Zumthor (1990).

Resumo expandido

    A Bruxa (The Witch, Robert Eggers, 2015) e Santa Maud (Saint Maud, Rose Glass, 2019) estão entre os filmes de horror mais elogiados do século XXI. Há, entre eles, semelhanças estéticas, narrativas e paratextuais: são produções britânicas, dirigidas por realizadores estreantes; lançaram para a fama duas jovens atrizes (Anya Taylor-Joy e Morfydd Clark), como protagonistas de narrativas sobre mulheres enfrentando crises pessoais que as colocam em estados mentais instáveis; nos dois casos, os enredos insinuam que as duas mulheres possuem vínculos com entidades sobrenaturais.
    Esta comunicação apresenta uma análise comparativa entre duas cenas específicas, focalizando a representação que os filmes fazem de Deus e do diabo, como seres que aparecem exclusivamente como vozes. O principal operador conceitual será a noção de performance vocal fragmentada (OPOLSKI, 2021), cunhada com base nos escritos de Goffman (1959) e Zumthor (1990).
    A análise usa o software iZotope RX para gerar gráficos tridimensionais de representação sonora das cenas, o que nos permitirá apontar com precisão as semelhanças, além de possibilitar a análise do grau de fidelidade que apresentam em relação a convenções sonoras do cinema de horror (HUTCHINGS, 2004; CARREIRO, 2019).
    Para Goffman (1959), a performance consiste em uma atividade social na qual os indivíduos apresentam uma imagem de si mesmos para os outros, compondo um modelo de representação dramática, no qual cada indivíduo desempenha um papel específico, através de gestos, linguagem e outros sinais. Ihde (1976) reforça como as características prosódicas da voz constituem elemento da performance. Segundo ele, a palavra falada está no centro do sentido do discurso oral, mas a completa apreensão desse sentido passa pela performance do corpo: gestos, timbre, entonação, pausas.
    Aplicando esse raciocínio ao cinema, Opolski (2021) propõe a noção de performance vocal fragmentada, enfatizando que no cinema esta é modelada não apenas por atores, mas também por editores e mixadores, que podem inserir ou eliminar pausas, reforçar frequências graves ou agudas, substituir sílabas, inserir efeitos sonoros. Nos dois casos estudados, essa modulação busca uma performance antinatural.
    Assim, as performances vocais se relacionam com as convenções narrativas e estilísticas do uso da voz no cinema de horror, levando em conta dois aspectos principais: o som fora de quadro (CHION, 1994), importante para gerar o afeto do horror no público (HUTCHINGS, 2004); e as representações vocais de seres sobrenaturais, acionadas por convenções de gênero (DOANE, 1983; BURNETTE-BLETSCH, 2016, p. 183).
    Nos filmes de horror, antagonistas costumam emitir vozes com textura gutural, em frequências próximas (100-300 Hz) ao limite de audição do ouvido humano. Em texto anterior (CARREIRO, 2019, p. 257), aponto que emissões vocais de antagonistas de origem obrenatural costumam ser modificadas digitalmente.
    As cenas analisadas documentam momentos em que as protagonistas de Santa Maud e A Bruxa conversam, respectivamente, com Deus e o diabo. Elas ocorrem no terceiro ato, e são momentos determinantes na decisão de cada uma das mulheres sobre a resolução das histórias.
    O diabo que dialoga com Tomasin (Taylor-Joy) possui voz com frequência fundamental próxima a 500Hz, com energia sonora também na faixa entre 5-15KHz, e quase sem frequências médias (faixa que dá definição às palavras). É sibilante, sussurrada, maliciosa. A performance vocal é coerente com um modelo do diabo presente no cinema: homem, sedutor, ardiloso.
    Assim como no filme anterior, a voz de Deus em Santa Maud surge em todos os canais de reprodução, preenchendo de forma antinatural todo o espaço acústico, sem que pareça se originar de um ponto específico da diegese. Possui sonoridade gutural, situada na faixa entre 80-100Hz, também coerente com representações vocais da divindade no cinema: masculina, tranquila, passando sensação de conforto e segurança.

Bibliografia

    BURNETTE-BLETSCH, 2016. “God at the movies”. The Bible in motion: a handbook of the Bible and its reception in film – Part 1, pp. 299-326, 2016. Berlin: De Gruyter, 2016.

    CARREIRO, Rodrigo. “Por uma teoria do som no cinema de horror”. Ícone, v. 17, n. 3, pp. 251-269, 2019.

    CHION, Michel. Audio-vision. New York: Columbia University Press, 1994.

    DOANE, Mary Ann. “A voz no cinema: a articulação de corpo e espaço”. A experiência do cinema, pp. 457-475. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

    GOFFMAN, Irving. The presentation of self in everyday life. New York: Anchor Books, 1959.

    HUTCHINGS, Peter. The horror film. Edinburgh: Pearson Education Limited, 2004.

    IHDE, Don. Listening and voice: phenomenologies of sound. Albany: University of New York Press, 2007.

    OPOLSKI, Débora. Edição de diálogos no cinema: a fala cinematográfica como um elemento sonoro. Curitiba: Editora da UFPR, 2021.

    ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.