Trabalhos Aprovados 2022

Ficha do Proponente

Proponente

    Clara Bastos Marcondes Machado (ECA-USP)

Minicurrículo

    Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, na Universidade de São Paulo (PPGMPA-USP). Mestre no mesmo programa com a dissertação “A ressignificação no cinema de found footage feito por mulheres” e bacharel em Audiovisual pela mesma instituição, com ênfase em montagem e direção cinematográfica. Diretora e roteirista dos curtas Diva (2016) e Tempo (2014). Atua também como montadora em curtas-metragens, documentários e series de televisão, entre outros.

Ficha do Trabalho

Título

    Performatividade no arquivo audiovisual em Cuatreros (2016)

Seminário

    Cinemas mundiais entre mulheres: feminismos contemporâneos em perspectiva

Formato

    Presencial

Resumo

    Propomos uma análise do longa-metragem Cuatreros (2016), da argentina Albertina Carri. O filme parte da busca da diretora por um filme desaparecido, baseado em um livro escrito por seu pai sobre o rebelde gaucho Isidro Velázquez. A voz de Carri descreve sua saga como um diário, conforme uma multiplicidade de imagens de arquivo é mostrada na tela. Defendemos que Cuatreros pode contribuir com uma linguagem feminista do arquivo, ao dar lugar para a subjetividade de quem se apropria das imagens.

Resumo expandido

    A presente comunicação se debruça sobre o longa-metragem Cuatreros (2016), da realizadora argentina Albertina Carri. Cuatreros se desenvolve a partir da busca da diretora por um filme argentino desaparecido, filmado nos anos 1970, que teria sido baseado em um livro escrito por seu pai sobre o rebelde gaucho Isidro Velázquez. Narrado quase ininterruptamente pela voz over de Carri, o Cuatreros desdobra a busca pelo filme em uma tentativa de fazer um filme próprio sobre Vélazquez, e, por fim, em uma série de questionamentos acerca da história familiar da diretora, cujos pais desapareceram durante a ditadura militar argentina. Enquanto a voz de Albertina discorre sobre sua saga quase como um diário, uma multiplicidade de imagens de arquivo é cotejada em uma tela que se desdobra por vezes em até cinco imagens simultâneas. As imagens utilizadas são impessoais, um arquivo disperso e heterogêneo contendo trechos de filmes de ficção, animações, publicidades e reportagens, entre outros, que retratam a Argentina dos anos 1970, mas a narração over promove uma enunciação autobiográfica marcada pela subjetividade, e que demarca de forma reiterada o seu lugar de enunciação – de mulher branca, lésbica, burguesa.

    Embora ausente das imagens, o corpo da realizadora vai progressivamente tomando a cena ao longo do filme, através da narração, conforme a busca de Carri é entremeada por seu processo de gravidez, puerpério e, por fim, pela figura de um ácido que corroe seu organismo e que culmina na dissolução de seu casamento. Na narrativa de Carri, o processo de recuperação de memória é constantemente atravessado pelo corpo. Me interessa então, analisar de que forma a mobilização do arquivo fílmico em Cuatreros pode contribuir com uma linguagem feminista de arquivo, ao introduzir com centralidade em sua forma fílmica a presença do sujeito que se apropria das imagens. Além disso, a mobilização das imagens parece romper com uma hierarquização tradicional do arquivo, seja pela escolha das fontes ou pela montagem. Ao lado de reportagens, institucionais e documentários mais próximos da história política oficial há filmes eróticos e propagandas, em geral tidos como de valor inferior. A montagem acumula diferentes imagens na tela simultaneamente, desafiando a apreensão do espectador, e criando ressonâncias e deslocamentos através da repetição de personagens e signos.

    O atravessamento de gênero no arquivo cinematográfico tem chamado progressiva atenção da academia. A autora Catherine Russell defende a necessidade de um despertar das dinâmicas de gênero dos arquivos. “Dado o profundo engendramento da cultura da imagem do século XX e a misoginia sistemática de seu arquivo, o modo mais urgente e imediato de despertar diz respeito, talvez, ao desvio da imagem da mulher” afirma a autora, defendendo que tal ‘despertar’ teria como objetivo a restauração da subjetividade, agência e trabalho das mulheres (RUSSELL, 2018, p. 184). Já Domietta Torlasco propõe o termo “arquivo herético” para uma forma de trabalho com arquivo a partir do digital que marca um lugar de resistência em relação aos mecanismos tradicionais de reconhecimento, preservação e recuperação da memória. Torlasco propõe imaginar “um legado indisciplinado, poroso e incoerente, que se apropria com desobediência de uma certa história em vez de tentar negá-la” (TORLASCO, 2013: vii). Trata-se de pensar de que forma “uma linguagem de arquivo pode coincidir com uma crítica feminista e uma linguagem fílmica feminista” (RUSSELL, 2018, p.191), uma arquiveologia própria, que trabalharia contra a ordem do patriarquivo (DERRIDA, 2001).

    O arquivo em Cuatreros é fugidio, excessivo, e não oferece as respostas que nele se buscam. Defenderemos que o filme aponta para uma linguagem de arquivo feminista, ao negar a pretensão de neutralidade e racionalidade, em direção a uma ideia de performatividade que se coloca a partir da demarcação da posição de subjetividade e da incorporação das contingências da memória.

Bibliografia

    BARRENHA, Natalia e PIEDRAS, Pablo [orgs.]. Silêncios históricos e pessoais: memória e subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo. Campinas: Editora Medita, 2014.

    BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, 2004. Civilização Brasileira.

    DE LAURETIS, Teresa. Technologies of Gender: Essays on Theory, Film, and Fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1987.

    DERRIDA, J.; DE MORAES REGO, C. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

    HOLANDA, K. (org.). Mulheres de Cinema. Rio de Janeiro: Numa, 2019.

    MULVEY, Laura. Afterimages: On Cinema, Women and Changing Times. London: Reaktion Books, 2019

    RUSSELL, Catherine. Archiveology: Walter Benjamin and archival film practices. Durham: Duke University Press, 2018.

    TORLASCO, Domietta. The Heretical archive: digital memory at the end of film. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013.