Trabalhos Aprovados 2022

Ficha do Proponente

Proponente

    Iulik Lomba de Farias (UFF)

Minicurrículo

    Doutorando em Cinema e Audiovisual pela UFF (Universidade Federal Fluminense), Mestre em Antropologia Social pela UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) e Bacharel em Cinema e Audiovisual pela UFF (Universidade Federal Fluminense), tem interesse por Cinema Indígena, Cinema de Vanguarda, Antropologia Visual, Performance e Etnologia Ameríndia. Membro-idealizador do LADRAK (Laboratório de Dramaturgia e Kinopoéticas), núcleo de experimentação estética, poética e política.

Ficha do Trabalho

Título

    Imagem, xamanismo e tempo:pistas-ameríndias em “O Espírito da TV” 1990

Formato

    Presencial

Resumo

    O Espírito da TV-1990 de Vincent Carelli e Dominique Gallois, realizado entre os Wajãpi, acompanha a chegada do vídeo em uma das aldeias dessa etnia e faz registros das repercussões do acontecimento para o grupo. Uma vez os aparelhos funcionando está dado o alvoroço. Parentelas no entorno da tela e imagens documentadas pelo Projeto Vídeo nas Aldeias são exibidas e comentadas com efervescência pelos amazônicos. Alguma pistas da relação entre imagem, xamanismo e tempo, estão dispersas pelo filme.

Resumo expandido

    Desejamos fazer aqui um exercício especulativo acerca de duas impressões que nos atravessaram ao rever recentemente o filme de Carelli e Gallois, no que diz respeito a uma espécie de estatuto da imagem para os Wajãpi: a primeira talvez não muito óbvia, é a de que dentre os materiais fílmicos projetados no Amapá, um dos que mais repercute foi filmado entre os Guarani-Kaiowá no final dos anos 1980 no MS, e que nos dá pistas de uma afetação sofisticada entre imagens, mundos e cronologias no pensamento dos amazônicos; e a segunda um tanto mais facilmente apreciável, é a de que os Wajãpi se vêem impelidos a contra-efetuar através de práticas xamânicas, não apenas o aparelho televisivo em si, mas também o fluxo de imagens visibilizado por ele.
    Acreditamos que uma provável razão da repercussão do material Kaiowá é subsidiária de uma descontinuidade entre língua e transformações advindas do contato; como se o reconhecimento de determinado vocabulário estivesse descompassado com as vestimentas e a realidade pragmática descrita na fala do parente Kaiowá, que denunciava o desmatamento e a destruição sistemática da mata, o que é recebido pelos Wajãpi como uma catástrofe, já que certamente os sistemas amazônicos de conhecimento nunca haviam cogitado um “acabar-o-mato-do-mundo”, antes de entrarem em relação com o “fora” da floresta relatado nas imagens. Nos parece que a idéia de um mundo-sem-mato soava ao mesmo tempo duvidosa e alarmante, o que tornava filosoficamente relevante os depoimentos.
    Tal desajuste inquietante parecia advir da possibilidade de comunicação linguística, como se a inteligibilidade estivesse em equívoco “histórico” com a falta de mato no mundo, como se no mundo-sem-mato fosse inconcebível uma língua “inteligível”; ou ainda, como se um mundo-sem-mato fosse um mundo-sem-língua, simplesmente porque a dissociação entre “gente-indígena” e mato, nunca havia sido colocada para o pensamento Wajãpi.
    A realidade e o mundo atualizados pelo parente que fala uma língua “inteligível” naquelas imagens, eram, portanto, incompatíveis com o próprio fato de esse parente poder falar uma língua “inteligível” em um mundo-sem-mato. Aquelas imagens eram imagens impossíveis. Como se a caixa-de-aço e suas imagens tivessem origem exatamente na impossibilidade. Dito em outras palavras, nos parece que o equívoco “histórico” produzido pelo material Kaiowá e pela TV nas agendas Wajãpi, se revelava para os amazônicos menos uma aparição futurística, que uma descontinuidade inédita entre língua e mundo. Não havia um desconhecimento dos Wajãpi da categoria imagem, por exemplo. Ao longo de todos os diálogos, o termo ta’anga, “correspondente” tradutório de imagem, é convocado para se pensar as repercussões do encontro entre a TV e os Wajãpi. Fica explícito que os amazônicos tinham em seus regimes intelectuais muitas referências do que seriam e do que podiam as imagens. A questão, portanto, não era conceitual, mas sim pragmática.
    Aos poucos o estranhamento inicial de existir um mundo-sem-mato compatível com uma língua “inteligível”, até então inimaginável pelos Wajãpi, vai sendo substituído por um exercício especulativo que levava a sério esse devir-mundo; e, progressivamente, elementos, categorias e seres orbitantes na filosofia Wajãpi, vão assumindo lugares no mosaico intelectual dos ameríndios, que tentavam dar conta da potência daquele encontro. Muitos dos espectadores nos dias que sucederam as exibições se dizem adoecidos pelas imagens dos xamãs Kaiowá cantando. Outros relatam que espíritos-imagem desconhecidos foram trazidos pelos cantos para matar os Wajãpi. Em resumo, imagens capazes de interferir na duração dos corpos dos humanos. Imagens originárias de outros mundos que alteram o tempo no mundo-humano. Um tempo cortado, fissurado e alterado pela circulação e passagem das imagens de um circuito ontológico a outro, como se estar suscetível às imagens promovesse uma abertura à transformação do tempo que se vive, ou do tempo que ainda se pode viver.

Bibliografia

    CARELLI, Vincent; GALLOIS, Dominique. O Espírito da TV. São Paulo, 1990.

    DOUCET, Isabelle; DEBAISE, Didier; ZITOUNI, Benedikte. Narrate, Speculate, Fabulate: Didier Debaise and Benedikte Zitouni in conversation with Isabelle Doucet. Architectural Teory Review. Reino Unido, 2018.

    KRENAK, Ailton. Entrevista Programa Roda Viva. TV Cultura. São Paulo, 2021.