Trabalhos Aprovados 2022

Ficha do Proponente

Proponente

    Rodrigo Faustini dos Santos (USP)

Minicurrículo

    Rodrigo Faustini é pesquisador, doutorando em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo e bolsista pela FAPESP, trabalhando com cinema e ví­deo experimentais, found footage e materialidade de meios analógicos, eletrônicos e digitais. Também atua como realizador, com trabalhos exibidos no Festival de Animação de Annecy, Ars Eletronica, Festival de Havana, Experiments in Cinema, entre outros.

Ficha do Trabalho

Título

    Ablação, descarrilho, colapso: a autotomia no cinema experimental

Seminário

    Cinema experimental: histórias, teorias e poéticas

Formato

    Presencial

Resumo

    Em propostas do cinema letrista, na avaria da imagem no filme de apropriação, e nos espasmos da tela nos flicker films, entre outros, temos práticas que vão da contração (ou ablação) até o dano direto às estruturas cinematográficas. Na chave de uma poética “sacrificial” (adaptada de Georges Bataille), buscarei discuti-las como práticas que põem o dispositivo em jogo, que comprometem-no explorando seus limites – na contramão do cinema expandido, quando esse assume o progresso tecnológico.

Resumo expandido

    “O que ocorre se […] o suporte é tocado por mãos perversas?”, questiona Jean-François Lyotard em seu texto “Acinema” (GRAHAM; WOODWARD, 2015, p. 41), ao tratar de um cinema experimental que compara à pirotecnia, em seu dispêndio autófago mas instigante, destrutivo da “boa forma” fílmica mas catalisador de efeitos inatingíveis sob o domínio diegético e sua mise-en-scène. Já em um dos momentos em que sua filosofia do cinema se permite abordar poéticas radicais, como a do Letrismo, uma indagação similar é apresentada por Gilles Deleuze: por meio da implosão contra-comunicativa daquelas obras, daria-se a ver ali uma “morte cerebral agitada, ou [um] novo cérebro?” (DELEUZE, 2005, p. 257).
    De fato, se observarmos a história do cinema experimental, é possível notar que tal prática, para além de operar uma extensão do repertório expressivo do meio, via que acaba por fomentar a partir da década de 1960 um “cinema expandido”, também aponta, desde os primeiros filmes da vanguarda, para operações em via contrária, automutilantes: a eliminação da câmera em troca de intervenção direta nos filmes de Man Ray, o dispositivo “alquebrado” de Marcel Duchamp em Anémic Cinema (1926), o abandono da lógica narrativa e a mutilação do olhar executados em Un Chien Andalou (1929) – enfim, direções de uma elaboração do cinema na qual as próprias estruturas do meio (técnicas ou discursivas) são suprimidas, contraídas ou tensionadas, a ponto de colapso. Não por acaso, Peter Tscherkassky (que já qualificou seu cinema de apropriação como um que experimenta com a “manufratura” de imagens), em seu filme Train Again (2021), após se utilizar do tema antológico do “trem chegando a estação” como protótipo do cinema em plena operação, instiga então o descarrilho do mesmo (e da película que lhe suporta no projetor) para representar ali a ruptura da “via experimental” do cinema – identificando-a com a obstrução e perversão do aparato, antes colocado em risco do que aprimorado ou expandido pelas poéticas radicais.
    Partindo de tal recorte, agregando certas propostas do cinema letrista, a avaria da imagem no filme de found footage, a precariedade do “quase-cinema”, a de-animação nos filmes de Martin Arnold e Heinz Emigholz, o anti-cine de Javier Aguirre, as gambiarras de Paolo Gioli e Alfons Schilling e a convulsão monocromática dos flicker films, entre outros, tomados como práticas que vão da contração (ou ablação) até o dano direto às estruturas do meio, buscarei indicar como uma ampla gama de filmes experimentais colocam o dispositivo em jogo, comprometem-no para experimentá-lo em seus limites, na contramão da “expansão” afirmativa do progresso tecnológico e mesmo em desacordo com o ascetismo do “paracinema”, que desmaterializa o filme em favor de uma “ideia” auto-suficiente de cinema (WALLEY, 2020).
    Nem expandido nem sublimado em essências, a discussão do “acinema” de Lyotard, como pretendo retomar, ganha relevância para discutir tais filmes que danificam ou enguiçam os componentes cinematográficos e suas funções consolidadas, visto que aponta para uma poética “sacrificial” da boa forma, passível de aproximação com a economia do “dispêndio” discutida por Georges Bataille (WOODWARD, 2014): processo sustentado por dinâmicas de demolição, no qual a condição para o ato expressivo ou a comunicação “exige um defeito, uma falha” (BATAILLE, 2017, p. 52), orientando-se pela heterogeneidade do inacabado em oposição ao enclausuramento do pré-determinado, fomentando a entropia. Subvertendo disposições aparatosas, tal “sacrifício” do meio almeja assim abri-lo (lacerando-o) para novos circuitos, (re)mediações desviantes de sua pretensa universalidade para explorar sua condição matricial, “auto-diferencial” – multiplicidade interna que persiste e mesmo se revela no processo de autotomia de sua operacionalidade, dano “válido apenas enquanto nos desordena, contanto que desordene o sujeito ao mesmo tempo” (idem, 1988, p. 484), provocando dinâmicas críticas de readaptação.

Bibliografia

    AGUIRRE, J. Anti-Cine. Madri: Editora Fundamentos, 1972.
    BATAILLE, G. O Culpado. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2017.
    ____________. Ouvres complètes de Georges Bataille: tome 11. Paris: Gallimard, 1988.
    CANONGIA, L. Quase cinema. Rio de Janeiro: Funarte, 1981.
    COLLADO, E. Paracinema. Madri: Trama editorial, 2014.
    DELEUZE, G. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Editora brasiliense, 2005.
    DEVAUX, F. Le Cinema Lettriste (1951-1991). Paris: Paris Experimental, 1992.
    JONES, G; WOODWARD, A. Acinemas: Lyotard’s philosophy of film. Londres: Edinburgh University Press, 2017.
    KRAUSS, R. A voyage on the north sea. Nova Iorque: Thames & Hudson, 1999.
    MICHAUD, P-A. Filme: por uma teoria expandida do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
    MORAES, E. R. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2010.
    WALLEY, J. Cinema expanded. Oxford: Oxford University Press, 2020.
    WOODWARD, A. “A sacrificial economy of the image: Lyotard on cinema”. Angelaki, Londres, vol. 19, n. 4, dez. 2014, pp. 141-154.