Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Rafael de Souza Barbosa (UFMG)

Minicurrículo

    Mestre em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (2020). Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade FUMEC (2007) e especialização em Gestão Estratégica da Comunicação (2011) e Roteiro para Cinema e Televisão (2015), ambas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), atuando principalmente nos seguintes temas: documentário contemporâneo, imagens de arquivo, escritas de si e filme-ensaio.

Ficha do Trabalho

Título

    Conjugar intermitências: entre o dito e o indizível

Resumo

    Fronteira do desejo de narrar uma história sob a perspectiva do “eu” e do indizível, a escrita de si habita o que alguns pesquisadores chamam de “região do impossível”. Com frequência, depara-se com um “eu” inacessível, um “eu” turvo. Tomando isso como premissa, este trabalho parte de um fotograma comentado, como método de pesquisa e abordagem de análise, para investigar como a escrita de si em No intenso agora (2017), de João Moreira Salles, opera no limiar do dizer e do desvio.

Resumo expandido

    Uma imagem desfocada mostra Elisa Gonçalves, mãe do cineasta João Moreira Salles, com uma criança no colo (talvez o próprio diretor). A cena embaçada deixa o contorno dos rostos pouco visíveis, as feições não são bem decifráveis e se perdem na superexposição de uma tarde ensolarada. Ela parece estar à vontade, sentada no chão em um cenário indistinto. Uma imagem singular dentre aquelas apresentadas do arquivo de família no documentário No intenso agora (2017).

    Os arquivos de Elisa – em texto (nos artigos publicados pela Vogue norte-americana e na revista O Cruzeiro) e imagens (em dois rolos de filmes 16 mm feitos de modo caseiro em uma viagem com um grupo de amigos na China, em 1966, durante a fase inicial e manifestadamente mais forte da Revolução Cultural e nas imagens extraídas de acervo familiar) operam como ponto de reencontro entre o cineasta e a mãe. Como memorabílias, esses objetos de memórias promovem a dobra do tempo, lançam o sujeito em diálogo com o seu passado e o põe em elaboração (em uma escrita de si), entre o que é verbalizado e aquilo que, no seu limite, só pode ser insinuado.

    No caso de Elisa, o diretor chegou a ser cobrado a externar a morte da mãe no documentário. Seu fim trágico, sem dúvida, é uma chave de compreensão dos rumos do filme. Algo que o diretor, por vezes, nega. O pudor de abordar o tema, porém, não removeu o assunto da obra, e sim o impingiu a uma outra camada de assimilação: na entre-imagem, essa fenda no qual o ensaio permite operar. Para um filme que muito diz, onde o comentário tem peso na condução do espectador, a morte da mãe é tratada quase no silêncio da montagem. É ao “pôr uns junto a outros, traços das coisas sobreviventes”, como assinala Didi-Huberman (2012a, p.211), que o diretor diz o “indizível”.

    Este trabalho parte de um fotograma comentado, como método de pesquisa e abordagem de análise, para investigar como o suicídio de Elisa se faz presente em No intenso agora.

    No documentário, Salles escava arquivos para construir seus comentários, sua observação sobre o mundo. Um gesto que coloca a imagem em uma função menos ilustrativa, que trata os arquivos não como “uma evidência do mundo”, como diz Eduardo Escorel, montador do filme, mas como um meio de elaboração (de si, do outro, dos objetos do mundo, do que nos toca, do vivido ou do desconhecido), como dados que precisam ser montados, ressignificados pelo filme-ensaio.

    Entendemos que ensaiar tem essa dimensão de uma subjetividade expressa, do “pensar em voz alta”. Em No intenso agora essa voz pode, por vezes, ser apontada como totalizante, no sentido de querer preencher todas as imagens e dizer o que delas pensa (convicto do que diz). Um discurso elaborado, no qual o diretor pratica uma teoria da imagem e elide o próprio gesto ensaístico, que só pode se dar pelas lacunas.

    Talvez, por isso, esse gesto ensaístico se faça mais expressivo quando ele assume a impossibilidade: do resgate da memória de maneira íntegra, de uma subjetividade plena, de um passado completamente preenchido, de um “eu” inteiro. Nas imagens, isso se traduz na fronteira do dizer, uma vez que a escrita de si tem muito da transparência, mas também da opacidade. Como falar da morte da mãe? Como abordar esse suicídio? É possível ser um “eu” performático ou esse “eu” só pode ser, no limite, um traço?

Bibliografia

    ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: ADORNO, W.T. Notas de Literatura I. Tradução Jorge de Almeida. São Paulo: Ed. 34, 2003. p. 15-45.

    BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017

    CURSINO, Adriana; LINS, Consuelo. O tempo de olhar: arquivo em documentários de observação e autobiográficos. In: Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v.9, n. 17, p. 87-99, jan./jun. 2010.

    DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2015. p.113-139.

    GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

    VEIGA, Roberta. Por uma política da rememoração: a potência histórica no cinema de experiência pessoal. Contracampo – Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação, Niterói (RJ), v. 35, n. 3, p. 187-210, dez/2016b – mar/2017. Disponível em: . Acesso em: 10 de out. de 20