Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Lea Monteiro Oliveira Pinho (UFMG)

Minicurrículo

    Lea Monteiro é mestrando em Cinema pela EBA-UFMG, onde pesquisa direção de atores em No Coração do Mundo (2019). Formou-se em Ciências Sociais pela FAFICH-UFMG e em Cinema pela Escola Livre de Cinema. É criador, curador e produtor da Antropokaos: Mostra de Ficção Científica Brasileira, e dirige e produz o curta-metragem O Davi Morreu, aprovado no BH nas Telas 2019. Foi produtor do filme Cabeça de Rua, selecionado na 52ª edição do Festival de Brasília.

Ficha do Trabalho

Título

    As paisagens culturais de No Coração do Mundo (2019)

Resumo

    Ao comparar as teorias de Ismail Xavier e Denilson Lopes, mostro como No Coração do Mundo (2019), ao mesmo tempo, opera uma continuidade e uma ruptura com as visões de ambos. Na linha de um cinema calcado no cotidiano, com pessoas comuns, parece fazer um retorno à historiografia do cinema brasileiro para buscar saídas de um cotidiano que, em vez de integrar os sujeitos no cosmopolitismo defendido por Denilson, os faz sonhar com o Sertão-Mar de Ismail Xavier, mesmo que fora de esquemas alegóricos

Resumo expandido

    No Coração do Mundo (2019) de Gabriel Martins e Maurílio Martins foi definido por Calac Nogueira como “dividido entre dois impulsos”. Por um lado, há uma continuidade da estética do cotidiano observada nos dois longas anteriores da Filmes de Plástico. Do outro, há um diálogo com o “universo pop e com o cinema de ação”. Meu intuito nesse trabalho é esmiuçar como esses dois impulsos convivem no mesmo universo e como eles reforçam e deslocam os pensamentos de Ismail Xavier e Denilson Lopes.
    Denilson, em seu livro “No Coração do Mundo”, que coincidentemente (ou não), tem o mesmo título do filme, busca a definição de termos chaves para entender cinemas (Claire Denis, Jia Zhangke, Ozu, Bresson, etc.) que se debruçam sobre o comum, onde há uma valorização da “sobriedade e a austeridade sem realizar exercícios de metalinguagem desconstrutores nem de distanciamento, na esteira de Brecht”. Seu interesse é por uma encenação (ou pela falta dela) que se dedique a personagens comuns. Denilson se debruça sobre conceitos como entre-lugar, transculturalismo e cosmopolitismo para falar de um sujeito em fluxo constante, sem uma afiliação local ou nacional, uma vez que o local é cada vez mais povoado pelas interferências midiáticas e digitais, e o nacional deixa de caracterizar cidadãos a partir de seus mitos de origem.
    Dessa forma, há um deslocamento para o cotidiano. Somos convidados a estar com os personagens e não a nos identificar com eles. Nada de grandes emoções, apenas sentimentos que perpassam as dificuldades de se viver o aqui e o agora, no meio das multidões. Ao assumir a posição do entre-lugar, não há muito espaço para a alegoria política, tão característica do cinema brasileiro sobretudo nas décadas de 60 e 70, uma vez que, segundo Denilson, “a dialética rarefeita de Paulo Emílio Salles Gomes é insuficiente” (para entender o mundo de hoje).
    Tanto Paulo Emílio quanto Ismail podem ser lidos como entusiastas do cinema político sobretudo dos anos 60, considerado capaz de condensar a formação nacional do Brasil em alegorias políticas que dão forma aos filmes. Consideradas as diferenças dos períodos de cada filme, tanto Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) quanto Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, ganham relevo, para além da composição e da maturidade cinematográfica, pela sua capacidade de articular o que significa ser brasileiro desde que essas terras ganharam o nome de Brasil. Segundo Ismail, esse cinema “internalizou a crise política da época na sua construção formal, mobilizando estratégias alegóricas marcadas pelo senso da história como catástrofe”. E “a ordem tempo, no filme, se compõe como movimento próprio e interno à sociedade brasileira” (2012, p. 35), ao se referir a Deus e o Diabo.
    No Coração do Mundo (2019) parece trazer elementos tanto do comum e do cotidiano tais como eles são definidos por Denilson quanto da Terra da Salvação, do Sertão-Mar, tão destacados por Ismail. Selma (Grace Passô) procura o coração do mundo, um lugar que não se sabe exatamente onde é, mas que nos lembra o mítico sertão-mar de Glauber. Entretanto, a maior parte do filme é calcada no cotidiano.
    Os personagens não se perdem nem no psicologismo nem na mera alegoria. Ana (Kelly Crifer) e Marcos (Leo Pyrata) são personagens comuns, com vidas ordinárias. No primeiro impulso do filme, eles integram a paisagem, se confundem com a multidão. No entanto, no segundo impulso, parecem procurar uma resposta, uma saída desse cotidiano. Talvez porque o cosmopolitismo elogiado por Denilson não seja a realidade do bairro Laguna em Contagem, e em um mundo cada vez mais internacionalizado os sujeitos não buscam conformidade com um cotidiano que restringe seus fluxos apenas aos perímetros da cidade em que nasceram. Sem fugir do cotidiano, mas sem cair nas limitações subjetivas da alegoria política, No Coração do Mundo (2019) traça um caminho próprio. É uma confluência entre paradigmas do cinema de fluxo e da historiografia do cinema brasileiro a ser investigada.

Bibliografia

    BRESSON, Robert. Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Iluminuras, 2005.
    GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
    JÚNIOR, Luiz Carlos Gonçalves de Oliveira. O cinema de fluxo e a mise en scène. Dissertação de mestrado. Meios e Processos Audiovisuais, Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. 2010.
    LOPES, Denilson. No Coração do Mundo: paisagens transculturais. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
    NOGUEIRA, Calac. A parte e o todo. Cinética: Cinema e Crítica. 2019.
    XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
    XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Terra e Paz, 2001.