Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Fabio Camarneiro (UFES)

Minicurrículo

    Fabio Camarneiro é professor adjunto no curso de Cinema e Audiovisual e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional – PPGPSI, ambos na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. É doutor em Meios e Processos Audiovisuais e mestre em Comunicação Impressa e Audiovisual, ambos pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Seus principais temas de pesquisa são o cinema brasileiro e as relações entre o cinema e outras artes.

Ficha do Trabalho

Título

    Da paisagem à imagem-mundo: natureza em “Luz nos trópicos”

Resumo

    Paisagem e natureza estão entre os temas centrais de Luz nos trópicos, longa-metragem de Paula Gaitán. O filme insere seus personagens em diferentes espaços naturais ao mesmo tempo em que reelabora um vasto repertório iconográfico ligado à paisagem. Mais importante, o filme estabelece entre as paisagens naturais e seus observadores (o binômio Natureza/Cultura) uma relação dialética. Nossa hipótese é que as “imagens-mundo” do filme de Gaitán tentariam elaborar as novas paisagens do antropoceno.

Resumo expandido

    Paisagem e natureza são figuras incontornáveis para se pensar a identidade brasileira. Como Sergio Buarque de Holanda demonstrou em Visão do Paraíso, motivos “endênicos” povoavam o imaginário a respeito do recém-descoberto continente americano desde os primeiros momentos da colonização do continente, recuperando mitos que versavam, por exemplo, sobre “um lugar abençoado cujos habitantes não padecem [de] mal algum, nem calor, nem frio, nem tristeza, nem fome, sem sede, nem sofrimentos, mas recebem, ao contrário, com largueza, todos os bens imagináveis”. (HOLANDA, 2000: 207) Mitologias à parte, a representação da natureza será desde então parte importante na construção de um imaginário sobre o Brasil.
    Paisagem e natureza são também os temas principais de Luz nos trópicos, longa-metragem da cineasta Paula Gaitán. Filmado no Pantanal brasileiro e na Chapada dos Guimarães, no Estado de Mato Grosso, mas também em Manhattan, Nova York, Luz nos trópicos — durante suas mais de quatro horas de duração — abre mão de uma estrutura narrativa convencional para acompanhar personagens inseridos em diferentes espaços naturais (em embarcações sobre rios, em planícies de gelo, em meio à mata, no topo de montanhas ou no interior de grutas), mas também em uma rua no bairro nova-iorquino de Chinatown. Estamos ora em Nova York, ora em uma aldeia indígena no Brasil. Nos EUA, há uma artista plástica e um xamã. Em outras sequências, um grupo de europeus, trajando roupas do século XIX, vaga pelos cenários naturais do Pantanal e da Chapada dos Guimarães sem objetivo evidente.
    Em todas essas passagens, Luz nos trópicos reelabora um repertório iconográfico da paisagem natural que percorre desde o neoclassicismo de Nicolas-Antoine Taunay e de seu filho Félix-Émile Taunay, até o romantismo alemão (Caspar David Friedrich) e francês (Eugène Delacroix) e a iconografia de Ofélia, personagem da peça Hamlet, retratada por artistas como John Everett Millais e Friedrich Wilhelm Theodor Heyser (e no filme de Gaitán evocada na cena em que a atriz Clara Choveaux aparece flutuando sobre as águas de um rio), entre outros. Porém, ainda mais importante que essas referências pictóricas, o filme parece questionar o conceito romântico de natureza, que a relaciona ao sublime e a pensa como algo exterior ao ser humano. Em Luz nos trópicos, a natureza surge em uma relação dialética com o humano: ao mesmo tempo que ela os define, as ações humanas também definem a natureza.
    Assim, o filme insere-se em um pensamento mais amplo que vem repensando a ideia da natureza. Em seu livro Depois de Gaia, Bruno Latour afirma que, no contemporâneo, “a Natureza, a natureza de outrora” deixou de ser “indiferente, dominadora, uma madrasta cruel” para tornar-se algo “excessivamente sensível à nossa ação”. Se antes os humanos “éramos sensíveis, responsáveis e altamente morais”, agora “Gaia parece ser excessivamente sensível à nossa ação, e […] parece reagir extremamente rápido ao que sente e detecta”. (LATOUR, 2020: 227)
    Ainda que não se limite às paisagens naturais, o filme de Gaitán concebe a natureza de maneira complexa. A partir das palavras de Latour, tratar-se-ia de uma relação em que observador e natureza “não podem ser separados ou criticados em separado”. (LATOUR, 2020: 38) Assim, a rua em Nova York é filmada em um lento movimento lateral, semelhante àquele das pequenas embarcações nos rios brasileiros. Natureza e ação humana não aparecem em oposição binária (um versus o outro), nem orquestradas em um mágico reencontro que pudesse fazer desaparecer suas tantas diferenças, mas em uma oposição “não mais entre natureza e cultura […], mas sim entre, de um lado, Natureza/Cultura e, do outro, um termo que os incluiria como um caso particular”. (LATOUR, 2020: 65) Para superar essa oposição, Latour propõe o conceito de “mundo”. Nesse sentido, nossa hipótese é que as “imagens-mundo” do filme de Gaitán elaborariam as novas paisagens do antropoceno.

Bibliografia

    BENJAMIN, Walter. O anjo da história. tradução: João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
    DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental, 2017.
    DESCOLA, Philippe. Outras naturezas, outras culturas. tradução: Cecília Ciscato. São Paulo: Editora 34, 2016.
    DIAS, Elaine. Paisagem e academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851). Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
    HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. (Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro)
    LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza do antropoceno. tradução: Maryalua Meyer. São Paulo; Rio de Janeiro: Ubu; Ateliê de Humanidades Editorial, 2020. (Coleção Exit)
    SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.