Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Ana Daniela de Souza Gillone (ECA-USP)

Minicurrículo

    Professora do Curso de Pós-graduação em Comunicação da FMU – FIAM-FAAM – Centro Universitário. Pesquisadora com pós-doutorado pelo Departamento de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

Ficha do Trabalho

Título

    As encenações das atrizes em Limite (Mario Peixoto, 1931)

Resumo

    O caráter ensaístico do filme Limite se constrói não apenas pela forma da montagem, mas nas próprias atuações de Carmen Santos, Olga Breno e Taciana Reis. O enfoque é sobre as encenações das atrizes, – a partir da forma como são construídas, considerando a perspectiva da mise-en-scène pensada pelo diretor, e a própria gestualidade delas – questionadas em uma perspectiva crítica às suas condições simbólicas de resistência ao discurso conservador e patriarcal.

Resumo expandido

    Em Limite, a atriz Olga Breno representa a mulher altiva com vestes rasgadas que, junto a duas pessoas em um pequeno barco à deriva no mar, revela seu passado como elegante costureira que esteve presa, ou assim se sentia em uma casa. As cenas que fazem essa recapitulação a mostram próxima a um homem que com as mãos tenta sem rigor detê-la. Ao escapar, ela inicia uma extenuante caminhada até chegar em seu refúgio, uma oficina de costura. Os anseios e as dificuldades dessa personagem e o reconhecimento de que algo em seu passado a levou a estar confinada, e ainda o seu processo de ruptura, são sugeridos através do jogo das imagens: as duas lâminas da tesoura aberta, seguidas do close sobre a notícia do jornal que informa a fuga de uma mulher de um presídio com a cumplicidade de um carcereiro (talvez seja ela mesma). As páginas, um pouco mais abertas que a tesoura, antecipam a sucessão de planos contendo esses dois objetos, que sugerem reflexão sobre as escolhas difíceis de sua vida como mulher isolada em um ermo vilarejo e que pode estar sendo procurada para cumprir pena. A montagem conceitual e, por sua vez, o tensionamento entre presente e passado parecem apontar para a dimensão processual do ensaio. Entretanto, o caráter ensaístico desse filme se projeta não apenas na forma como essas encenações são agenciadas na produção, mas na própria gestualidade dessa atriz, entre outras atrizes e personagens relacionadas.
    No segundo bloco do filme, a atriz Taciana Rei representa a frágil mulher, com roupa escura no citado barco, que narra a decepção vivida em seu casamento com um músico de cinema que se embriagava. Passamos, então, a vê-la a percorrer espaços, observar e dar atenção a uma criança que passa, tentando a todo tempo conseguir mais elementos para a elaboração de sua própria imagem. Em seus gestos, e somente por meio deles, se expressam o desencanto e sua urgência de sair de uma realidade insuportável – gestos no sentido do “ser-na-linguagem” (AGAMBEN, 2008). Oprimidas pelo patriarcado, pelos mecanismos de controle que promovem silenciamentos ou descréditos, por meio de seus deslocamentos essas personagens tiveram a chance de falar. Assim, nas encenações é possível observar a liberdade de dizer o que não seria conveniente na narrativa histórica implicada no filme. O discurso delas se potencializa diante da iconicidade que compõe a memória social nesse filme mudo.
    No terceiro bloco da narrativa, que se refere a história do homem (Raul Schnoor) que também está no barco, a atriz Carmen Santos interpreta uma prostituta com uma postura que denota a condição daqueles que não fazem parte da ideia de progresso que predominava no Brasil. Chama a atenção suas vestes burguesas em contraste com a paisagem provinciana e rural. O comportamento dela demonstra seu distanciamento dos valores burgueses idealizados no governo de Getúlio Vargas com o fim da República Velha. A atriz, comendo uma fruta e cuspindo as cascas, faz do ato alimentar com modos rústicos a ironia ao mito da modernidade.
    A análise das representações das personagens mulheres interpretadas pelas atrizes ancora-se aos recursos metodológicos implicados na sociologia da imagem (RIVERA CUSICANQUI, 2015). O processo de análise das representações das personagens e das posturas das atrizes é feito com a necessidade de problematizá-las na perspectiva do patriarcado, do discurso conservador e do poder colonial. Nesta dinâmica de análise, busca-se diálogos com elaborações teóricas sobre as encenações de atrizes e sobre os discursos que a imagem é capaz de produzir como afirma Bela Baláz (1948).
    Embora as encenações das atrizes em Limite sejam um dos pilares centrais da narrativa, o discurso do filme as apresenta como mais um entre os muitos materiais manipulados por Mario Peixoto no processo de construção da história. Entretanto, suspeitamos que as diversas formas como as atrizes incorporam seus papéis definem o fundamento central de leitura e conexão entre o filme e o ensaio.

Bibliografia

    ADORNO, Theodor. O ensaio como forma, Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades/Ed.34, 2003.
    AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. In: Arte e Filosofia, n. 28, Ouro Preto, 2008.
    BALAZ, Bela. A face das coisas. In: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 2008, p. 77 a 83.
    ___. Nature et évolution d’un art nouveau (1948). Paris: Payot & Rivages, 2011.
    BOU, Núria; PÉREZ, Xavier. El cuerpo erótico de la actriz bajo los fascismos. España, Italia, Alemania (1939-1945). Ediciones Cátedra, 2018.
    NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.
    MACHADO, Arlindo. O filme-ensaio. In: Sampaio, Rafael & Mourão, M. D. Chris Marker, bricoleur multimedia. São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, 2009, p.20-33.
    MULVEY, Laura. Prazer Visual e Cinema Narrativo. In: XAVIER, Ismail (Org.). A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 2008, p. 437-454.
    RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: ensayos. – Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.