Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Alexandre Kenichi Gouin (UFRJ)

Minicurrículo

    Mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalha como pesquisador para produções audiovisuais e artísticas. É tradutor e editor da Revista Eco-Pós. Atualmente realiza um doutorado na ECO/UFRJ, sob a orientação da Professora Anita Leandro, com pesquisa sobre a obra de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi.

Ficha do Trabalho

Título

    A outra face do arquivo, tocar a história

Seminário

    Cinema experimental: histórias, teorias e poéticas

Resumo

    Esta comunicação se propõe em apresentar no trabalho de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi uma forma singular de tensionar os documentos da história que possui forte teor político. Mostraremos como, ao colocar em relevo as dimensões plásticas do arquivo, os artistas possibilitam outras formas de se relacionar com as imagens do passado. Por meio de uma relação agora ancorada na sensação, as dimensões discursivas do arquivo se encontram subvertidas, apresentando assim outros mundos possíveis.

Resumo expandido

    Esta comunicação se propõe em apresentar uma forma singular de tensionar a imagem de arquivo, a partir da análise do filme Su tutte le vette è pace (1998) de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi. O longa-metragem aborda a condição de soldado na linha de frente do conflito da Primeira Guerra Mundial através da retomada de imagens de propaganda realizadas pelas nações beligerantes. Mas especificamente, são soldados austro-húngaros e italianos que são apresentados pelas imagens, nas montanhas dos Alpes. Essas são as únicas informações oferecidas pelo filme, através de três cartelas sucintas que o dividem em três partes. Embora grande atenção seja dada ao trabalho sonoro, é principalmente na reelaboração dessas imagens que vai se encontrar a apropriação e a restituição do documento. É na montagem que vai se desdobrar o trabalho crítico dos artistas.
    A reelaboração das imagens é operada através da câmera analítica, um aparelho construído pelos próprios artistas, cujo propósito é evidenciar e subverter o discurso presente nas imagens. Inspirada da técnica de cópia fotográfica por contato, ela vai permitir refilmar os filmes encontrados, fotograma por fotograma, podendo assim operar nestes últimos através de técnicas como: reenquadramento, ampliação de detalhes, alteração de velocidade. No filme, esses procedimentos são empregados de forma a fazer ressurgir os rostos dos soldados através de close, buscando assim distinguir, dentro das massas anônimas das tropas de soldados, a figura do “soldado homem”. Esses procedimentos nos apresentam a humanidade dos soldados através dos seus rostos, nos dando a ver de forma nítida os traços distintivos de cada um, os constituindo agora como indivíduos singulares e não mais como meros soldados.
    Assim, se o filme apresenta um fio condutor bastante linear, observa-se que o emprego dos procedimentos da câmera analítica permite constituir uma outra estrutura, não narrativa mas sensorial, que aflora por meio da dimensão tátil das imagens, promovida notadamente através da criação de close. O close é um elemento destacado por Jean Epstein como a própria “alma do cinema” (1974, p.65). Ele declara: “O close altera o drama pela impressão de proximidade. A dor está ao alcance da mão. Se esticar o braço, eu te toco, intimidade.” (1974). A dimensão tátil do close é também comentada por Patrick de Haas, que destaca um efeito de “encarnação” da imagem, devido à redução drástica da distância necessária para o bom funcionamento da representação, parecendo assim que a imagem da coisa ou do corpo pode se tornar diante dos nossos olhos a própria coisa ou o próprio corpo: “O close […] faz explodir o quadro da representação, oferecendo as coisas ao tato, esmagadas no olho” (DE HAAS, 2011, p.464).
    A montagem proporciona assim às imagens do conflito uma nova força que impacta o espectador. Se esse impacto se aproxima em alguns aspectos da noção de punctum desenvolvida por Barthes em A câmera clara, encontramos em “Le troisième sens” (1970) uma melhor aproximação através do “sentido obtuso”. Pensado para o cinema, o sentido obtuso possui fortes afinidades com o punctum, pois como ele se situa fora da linguagem, se desdobrando numa dimensão mais sensorial do que lógica. Disseminado no espaço da diegese, ele possui igualmente um forte potencial em contrariar a narrativa: “É evidente que o sentido obtuso é a própria contranarrativa; […] ele apenas pode fundar […] um corte inaudito, contralógico e no entanto verdadeiro.” (1992, p.56). Barthes sugere a ideia de “seguir” não uma ação ou um personagem, mas esse terceiro sentido, obtendo-se assim “uma outra temporalidade, nem diegética nem onírica, ter-se-á um outro filme” (BARTHES, 1992, p.57). É essa ideia que o filme coloca em prática ao se apoiar numa estrutura paralela à diegese, uma estrutura alicerçada no terceiro sentido, e que constitui assim uma contranarrativa da história.

Bibliografia

    BARTHES, Roland. La chambre claire. Note sur la photographie. Paris: Cahiers du Cinéma – Gallimard – Seuil, 1980.
    _________________. “Le troisième sens”. In: L’obvie et l’obtus – Essais critiques III, Paris: Points, Essais, 1992.
    BLÜMLINGER, Christa. Cinéma de seconde main. Esthétique du remploi dans l’art du film et des nouveaux médias. Paris: Klincksieck, 2013 (2009).
    DE HAAS, Patrick. Cinéma absolu. Avant-garde. 1920-1930. Marseille: METTRAY editions, 2018.
    DEBORD, Guy-Ernest e WOLMAN, Gil Joseph. “Mode d’emploi du détournement”. In: DEBORD, G. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2006. pp. 221-229.
    DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. Cinema 1. Tradução de Stella Senra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
    EPSTEIN, Jean. Écrits sur le cinéma 1921-1953. Tome 1 : 1921-1947. Paris: Éditions Seghers, (1974).
    GIANIKIAN, Yervant e RICCI LUCCHI, Angela. Notre caméra analytique. Paris, post-éditions / Centre Pompidou, 2015.