Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Aline Bittencourt Portugal (UFRJ)

Minicurrículo

    Aline Portugal é doutoranda em Comunicação Social pela UFRJ e mestre em Comunicação Social pela UFF. Realizadora audiovisual, roteirista e integrante da Mirada Filmes (www.miradafilmes.com.br), dirigiu o longa-metragem Aracati (Competitiva IDFA 2015, Mostra Aurora Tiradentes 2016) e curtas que circularam por diversos festivais nacionais e internacionais, tais como Festival do Rio, Curta Cinema, Festival de Cartagena (FICCI), Festival Luso Brasileiro de Santa Maria da Feira, entre outros.

Coautor

    Érico Oliveira de Araújo Lima (UFC)

Ficha do Trabalho

Título

    Tecer uma teresa em roda: “Tremor Iê” e o fazer entre mulheres

Seminário

    Cinemas mundiais entre mulheres: feminismos contemporâneos em perspectiva

Resumo

    Percorreremos aqui as tessituras entre mulheres no filme Tremor Iê (2019), tramado a muitas mãos, a partir de um encontro entre vizinhas (Lívia de Paiva, Elena Meirelles, Lila M. Salú e Deyse Mara). Tomaremos como mote a teresa, objeto usado para a fuga das prisões, num emaranhado de tecidos; e a roda, forma recorrente de reunião entre as mulheres que habitam a cena fílmica. Com elas, buscaremos pensar ainda o entrelaçamento entre tempos, entre filme e processo, entre real e ficção.

Resumo expandido

    Com retalhos de tecidos nas mãos, seis mulheres dispostas em roda perfazem os nós que dão forma a uma teresa. Convocamos essa imagem de Tremor Iê (Lívia de Paiva, Elena Meirelles, Fortaleza, 2019) como um operador metodológico para pensar a tessitura fílmica de maneira ampliada, numa conexão indissociável entre os procedimentos estéticos e os modos de fazer. Objeto que nos remete ao mesmo tempo ao encarceramento e a resistência a ele, essa corda feita a muitas mãos, femininas, diz muito das matérias, dos gestos e das formas que constituem o próprio filme.
    Lívia e Elena, recém-chegadas à cidade de Fortaleza, conhecem um grupo de mulheres vizinhas à casa onde moram, integrantes do grupo feminista Tambores de Safo, que teve forte atuação nas manifestações de 2013. Entre elas estão Lila M. Salú e Deyse Mara, que vivenciam em Tremor Iê as personagens Janaína e Cássia. Esse encontro é a própria condição de existência do filme, mas não apenas. Ele está impregnado tanto na feitura como na forma fílmica, que caminha sempre em busca de zonas de fronteira (HARAWAY, 1999). Essas zonas de fronteira dizem das muitas inseparabilidades que Tremor Iê propõe e que pretendemos desdobrar aqui. Nossa proposta é pensar uma construção metodológica aliada a um pensamento feminista que desvia das inúmeras clivagens determinadas pela epistemologia moderna (STENGERS, 2017), como aquelas entre real e ficção, política e imaginação, indivíduo e coletividade, saber e fazer, obra e processo, formas estéticas e formas de existência. Apostamos junto ao filme numa proposta transversal, interseccional, que faz pontes. Nesse sentido, Tremor Iê nos apresenta a roda e a teresa, que nos ajudam a desdobrar esses pensamentos. Aproveitando a fértil ambivalência do termo, perguntamos: que nós se entrelaçam para dar forma a Tremor Iê?
    O filme nos coloca em meio ao encarceramento de Janaína, presa política — numa trama que ecoa vivências reais das manifestações de 2013, e a processos coletivos que buscam reparação histórica, feitos em solidariedade feminina. Diante das violências do Estado que incidem, seletivamente, em corpos femininos e racializados, o filme costura as táticas imaginativas de Janaína, que assinalam rotas de fuga; os sonhos de Cássia, em busca da amiga; e o presente do confronto com as ruas de uma Fortaleza assombrada por “Soldados do Bem”, conforme o filme nomeia os novos agentes de vigilância de um governo totalitário. Tremor Iê nos lança em uma atmosfera que flerta com a ficção científica, propondo um estranho realismo (LE GUIN, 1996) que não é de todo distinto da experiência histórica e social brasileira de vários períodos, entre eles o momento atual. Além de emaranhar diferentes dimensões da realidade, numa aposta na ficção como parente do fato (HARAWAY, 1989), o filme entrelaça os tempos, desmontando mais uma clivagem: aquela que separa passado, presente e futuro. No lugar de uma linha reta, progressiva, que muitas das vezes constrói a História e as narrativas em forma de lança (LE GUIN, 1996), Tremor Iê propõe um tempo espiralar (MARTINS, 2002), feito de dobras que convocam diferentes dimensões e ancestralidades.
    Além da trama que acompanha a relação entre as duas personagens, os nós se tecem ainda entre muitas outras mulheres, que atravessam tanto a cena fílmica como seu processo de feitura. Para nós, pensar Tremor Iê e perceber o que ele faz operar demanda um olhar para a escritura fílmica num sentido ampliado, multiplicando os nós que interligam o encontro entre vizinhas, o roteiro, a filmagem, a montagem e todo um conjunto de ações envolvidas no ver junto e no debater o filme. Tal qual a roda de capoeira, a escritura abriga o movimento em que sempre é possível entrar alguém (SANTOS, 2018), para constituir uma experiência poético-política que atua como um rito vitalista diante das violências do processo colonial brasileiro, atravessado pelas políticas de morte movidas pelo racismo e pelo sexismo (GONZALEZ, 1984).

Bibliografia

    GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs. p.223-244, 1984.
    HARAWAY, D. Las promesas de los monstruos. In Politica y Sociedad, 30, 1999.
    HARAWAY, D. Primate Visions: gender, race, and nature in the world of modern science. Routledge, New York, 1989.
    LE GUIN, U. K. The Carrier Bag Theory of Fiction. In: The Ecocriticism Reader: Landmarks in Literary Ecology. Edited by Cheryll Glotfelty and Harold Fromm. The University of Georgia Press. Athens, Georgia, p.149-154, 1996.
    MARTINS, L. M. Performances do tempo espiralar. In: Graciela Ravetti; Márcia Arbex. (Org.). Performance, exílio, fronteiras, errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2002.
    SANTOS, A. B. Somos da terra. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 12, página 44 – 51, 2018. Disponível em: https://piseagrama.org/somos-da-terra/
    STENGERS, I. Reativar o animismo. Tradução Jamille Pinheiro Dias. Belo Horizonte: Chão de Feira, 2017.