Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Catarina Andrade (UFPE)

Minicurrículo

    Doutora em Comunicação/Cinema (UFPE). Professora do Departamento de Letras/UFPE. Professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Comunicação PPGCOM/UFPE e da Pós-graduação Narrativas Contemporâneas da Fotografia e do Audiovisual (Unicap). Vice-líder do Grupo de Pesquisa Laboratório de Experiência, Visualidade e Educação (LEVE). Autora (entre outros) do livro Corpos e paisagens – construção de memória e identidade em imagens e narrativas do cinema de Claire Denis e Abdellatif Kechiche.

Coautor

    Ricardo Lessa Filho (UFPE)

Ficha do Trabalho

Título

    A morte branca do Feiticeiro Negro: imagem-arquivo como re-existência

Seminário

    Cinemas pós-coloniais e periféricos

Resumo

    Buscamos investigar a imagem-arquivo no curta A morte branca do feiticeiro negro (Rodrigo Ribeiro, 2020), diante do gesto de Timóteo, escravo que se suicida e escreve uma carta, cujas palavras são trazidas no documentário fusionadas por imagens de arquivo da escravidão brasileira. Queremos entender o corpo posto diante da tela, frente ao corpóreo do arquivo de um homem negro que rompe o véu do esquecimento e traz à tona a história das “experiências silenciadas” e o desejo de “re-existência”.

Resumo expandido

    Ver uma imagem-arquivo. Tentar escrevê-la para transpor, mesmo lacunarmente, algo de sua temporalidade fossilizada. Pôr nosso corpo inteiro diante dela – para, talvez, perceber o açoito da vida que nos chega, nas chagas da escravidão dessa vida açoitada e agora alçada ao nosso campo visual e histórico. Nosso corpo frente ao corpóreo do arquivo de um homem negro que rompe o véu do esquecimento de seu sofrimento quando é capaz de escrever sua carta de suicídio, seu ato derradeiro e, por isso mesmo, interminável – tão sem fim que 159 anos depois de escrito seu gesto epistolar chegou até nós, um gesto que marca, duplamente, um desejo de morte e um desejo de re-existência. A carta como um vestígio, uma fresta através da qual a história de uma vida silenciada pudesse, algum dia, de algum modo, ser trazida à luz.
    A morte branca do feiticeiro negro (Rodrigo Ribeiro, 2020) nos apresenta a fusão entre a palavra escrita de Timóteo, o escravo que se suicida, e as imagens de arquivo da escravidão brasileira. Ante este curta documentário, como proceder para sondar a potência transversal de sua narrativa, deste ato dialético tão denso e cruel que faz reabrir feridas jamais cicatrizadas, efeito do sistema colonial, e cujo objeto é revelar e nomear uma vida, entre tantas outras milhões de vidas chicoteadas, assassinadas e silenciadas; mas que foi capaz de, em seu último ato, materializar o horror da escravidão e do colonialismo? A partir do que as imagens convocam como tatear o arquivo da escravidão – não apenas o “mal de arquivo” derridiano (DERRIDA, 2001), mas sobretudo o “arquivo do mal” dos colonizadores, deste “iceberg negro” que tão parcamente conhecemos e que talvez conheçamos menos do que sua ponta, a minúscula fissura da crueldade de sua história?
    Entendemos, que tanto no gesto de Timóteo quanto no de Rodrigo Ribeiro, se inscreve uma noção de re-êxistência tal como trazida por Adolfo Albán (2013), uma vez que tanto a carta quanto o documentário confrontam a realidade estabelecida do projeto hegemônico – e juntos abrem uma fresta para que “experiências silenciadas” (ALBÁN, 2017, p. 13) pelo sistema colonial possam ser recuperadas. São gestos que contribuem para o desprendimento das ficções naturalizadas e fazem revisitar a história considerando possibilidades outras de re-existir, “de ser, estar, pensar, saber, sentir, existir y vivir-con” (Walsh, 2013; p.19). Para Albán, o sujeito corpóreo é convertido em depositário dos sistemas de controle, produção, conhecimento, evangelização, e foi a partir de corpos explorados e degradados que a colonialidade construiu os seres à medida de suas necessidades (2017, p.14-15). Buscamos, então, pensar nesse corpo “marginal como sujeto pero central como cuerpo explotado en el sistema hegemónico de dominación/producción” (ALBÁN, 2017, p.15).
    Propomos pensar o gesto de Timóteo (e o que dele realizou Rodrigo Ribeiro) como um ato de entrada em um necrotério escravista – escreveremos com S. Hartman –, pois o arquivo permite uma visualização final e autoriza um último vislumbre de pessoas prestes a desaparecer (HARTMAN, 2007, p. 17). Achille Mbembe em seu ensaio sobre o arquivo pôde formular a partir de uma perspectiva contígua à Hartman, a ideia de “um cemitério no sentido de que fragmentos de vidas e peças do tempo estão sepultadas ali, suas sombras e vestígios inscritos em um papel e preservadas como tantas relíquias” (MBEMBE, 2020, p. 2). Michel De Certeau (1993) também compreende que o arquivo permite apagar o lugar do presente e converter-se no modo autorizado de falar do passado e de seus mortos. Assim, como se sustenta “a prova” quando a experiência fica fora do arquivo-repositório? Como escrever sobre as vidas e as experiências da escravidão a partir dos arquivos que restam? E quais são, justamente, os restos destes arquivos? Como sondá-los, como decolonizá-los? Como re-existir a partir da memória (ALBÁN, 2017) para desvelar o que tornou possível encontrar o significado de continuar a existir?

Bibliografia

    ALBÁN, Adolfo. Prácticas creativas de re-existencia: más allá des arte… el mundo de lo sensible. Buenos Aires: Ed. Del Signo, 2017.
    ALBÁN, Adolfo. Pedagogías de la re-existencia, artistas indígenas y afrocolombianos. In: WALSH, Catherine. Pedagogías decoloniales: Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo 1. Quito: Abya Yala, 2013.
    DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
    DE CERTEAU, Michel. La escritura de la historia. México: Universidad Iberoamericana, 1993.
    HARTMAN, Saidiya. Lose your mother. New York: Farrar, Straus, and Giroux, 2007.
    MBEMBE, Achille. El poder del archivo y sus límites. In: Orbis Tertius, v. 25, nº 31, pp. 1-7, 2020.
    WALSH, Catherine. Pedagogías decoloniales: Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo 1. Quito: Abya Yala, 2013.