Trabalhos Aprovados 2021

Ficha do Proponente

Proponente

    Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro (UFBA)

Minicurrículo

    Marcelo R. S. Ribeiro é professor de História e Teorias do Cinema e do Audiovisual, atuando desde maio de 2017 na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Autor do livro Do inimaginável (2019), coordena o grupo de pesquisa Arqueologia do Sensível e participa do Laboratório de Análise Fílmica, desenvolvendo e orientando pesquisas sobre imagem, história e direitos humanos. É doutor em Arte e Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (2016).

Coautor

    Marina Lordelo Carneiro (UFBA)

Ficha do Trabalho

Título

    Escravidão, terror branco: casas assombradas em O Nó do Diabo e Açúcar

Seminário

    Cinemas pós-coloniais e periféricos

Resumo

    Duas abordagens recentes da herança histórica da escravidão, assim como da persistência do racismo estrutural no Brasil contemporâneo, recorrem a elementos dos gêneros do horror e do fantástico. Este artigo interroga como o Engenho Wanderley, em Açúcar (2017), e a casa da família Vieira, em O Nó do Diabo (2018), são construídos com base em diferentes investimentos topofílicos e topofóbicos, atualizando o topos da casa assombrada e insinuando a releitura da escravidão como terror branco.

Resumo expandido

    Duas tentativas recentes de abordar aspectos da história da escravidão transatlântica, sua herança histórica e a persistência do racismo estrutural no Brasil contemporâneo, recorrem a elementos dos gêneros do horror e fantástico, com destaque para o topos da casa assombrada. Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira situam Açúcar (2017) no Engenho Wanderley, enquanto, em O Nó do Diabo (2018), os diretores Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Gabriel Martins e Ian Abé compõem uma narrativa episódica em torno da casa da família Vieira. Em ambos, a casa-grande é relida – ou revisitada, em um movimento espectral – como casa assombrada.

    Percorrendo os anos de 2018 (em episódio com direção de Ramon Porto Mota), 1987 (direção de Gabriel Martins), 1921 (direção de Ian Abé), 1871 (direção de Jhésus Tribuzi) e 1818 (direção de Ramon Porto Mota) de forma diacrônica e regressiva, a estrutura de O Nó do Diabo é fundamental para a construção de uma perspectiva diante da história, que interroga o racismo do tempo presente e experiências do passado escravista a que está relacionado. Se, no campo da história, a violência fundadora do arquivo da escravidão deve ser confrontada por meio do que Saidiya Hartman (2020) denomina fabulação crítica, no campo do cinema, a ficção se revela como uma forma de suplementar as lacunas do arquivo, por meio de procedimentos imaginativos e da criação de narrativas que operam como atos socialmente simbólicos (nos termos de Fredric Jameson), permitindo delimitar uma retrospectiva histórica ficcional que remonta à estruturalidade do racismo a partir do processo de escravização.

    Em Açúcar, a narrativa se situa diegeticamente no presente, mas os traços de outros tempos atravessam e assombram o retorno de Bethânia ao engenho de sua família, sugerindo uma relação afetiva complexa entre a protagonista e o espaço herdado. A estadia da protagonista na casa familiar é assombrada por espectros anacrônicos, que convertem tudo o que é familiar em estranho. O filme explora os efeitos associados ao que Freud designou por meio do conceito de unheimlich, cuja intraduzibilidade conduz ao oxímoro estranho familiar ou simplesmente às noções de estranho ou inquietante. A estranheza se torna a condição de possibilidade de uma transformação que se opera na própria figura de Bethânia, inscrevendo-se em sua aparência.

    Nos dois filmes, revisitar a casa-grande como casa assombrada pelos fantasmas da escravidão é o que torna possível reconhecer a multiplicidade de afetos que constituem a casa como lugar contraditório de engajamento emocional de diferentes personagens, entendidos como figuras da história. Neste sentido, a partir de interpelações do conceito de topofilia proposto por Yi-fu Tuan (2012), é possível explorar os diferentes investimentos topofílicos e topofóbicos de que as casas se tornam objeto, os dois filmes limitam as possibilidades de suas abordagens da história da escravidão às perspectivas e sensibilidades que comandam a domesticidade, que permanecem associadas à branquitude como forma de subjetivação, embora sejam também assombradas por figuras de alteridade convocadas pelos filmes de formas mais ou menos saturadas ou estereotipadas.

    Dessa forma, configura-se um campo de forças, marcado pela tensão entre a opacidade e a difícil legibilidade dos traços da experiência histórica da escravidão, de um lado, e a transparência e a legibilidade convencional a eles conferida pelos códigos de gêneros narrativos, que obedecem a economias simbólicas específicas associadas ao terror e ao fantástico. Em diálogo com Grada Kilomba (2019), que enfatiza o racismo como problemática branca, e considerando o argumento de bell hooks de que nomear o que a branquitude representa na imaginação negra é geralmente falar de terror, pensamos que esse campo de forças precisa ser compreendido por meio de uma leitura a contrapelo, que deve incidir tanto sobre a história quanto sobre as narrativas fílmicas, reconhecendo a escravidão como terror branco.

Bibliografia

    FREUD, Sigmund. O inquietante. In: ______. História de uma neurose infantil (O homem dos lobos): além do princípio do prazer e outros textos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 328-376.

    HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Tradução Fernanda Sousa e Marcelo R. S. Ribeiro. Revista ECO-Pós, v. 23, n. 3, p. 12–33, 24 dez. 2020. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27640. Acesso em: 19 abr 2021.

    hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. Trad. Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.

    JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Ática, 1992.

    KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

    TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Trad. Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel, 1980