Seminários Temáticos para o triênio 2020-2022

Cinema no Brasil: a história, a escrita da história e as estratégias de sobrevivência

Resumo

    O cinema brasileiro conta com uma produção diversificada e reconhecida. Tornou-se uma atividade econômica de peso e suscita pesquisas e reflexões historiográficas significativas. No entanto, persiste vulnerável nas suas formas de produção, difusão e preservação e sobretudo no diálogo e na sua legitimidade em relação ao seu público. Esse é um dado estruturante de sua história e das histórias que se escreveu sobre ele. O seminário aqui proposto procura investigar as estratégias de sobrevivência e os desafios de permanência do cinema e do audiovisual no Brasil através de duas perspectivas principais: a historiografia e a preservação/circulação das imagens e sons. Procura, portanto, examinar a história e a presença do cinema brasileiro na sociedade, suas produções e condições de realização, bem como os diálogos que estabeleceu com outras cinematografias, artes e mídias, também voltando-se criticamente para a escrita dessa história e para o trabalho com arquivos fílmicos e não fílmicos.

Introdução

    As imagens e as práticas culturais criadas pelo cinema não existem em meio ao vazio: elas são parte de discursos artísticos e debates sociais que revelam seu tempo histórico. Assim, evidenciam as rupturas e continuidades entre o passado e o presente, as relações da produção audiovisual com o público, bem como o grau de interesse político do Estado e da sociedade na existência e na sobrevivência das imagens e sons produzidos no país. O seminário aqui proposto procura investigar as estratégias de sobrevivência e os desafios de permanência do cinema no Brasil através de duas perspectivas principais: as suas formas de existência e realização, a escrita de sua história e a preservação de sua cinematografia. Procura, portanto, examinar a história e a presença do cinema brasileiro na sociedade, suas produções e condições de realização, bem como os diálogos que estabeleceu com outras cinematografias, artes e mídias, também voltando-se criticamente para a escrita dessa história e para o trabalho com arquivos fílmicos e não fílmicos.
    Pretende, sobretudo, contribuir para o esforço contínuo de escrever a história do cinema no Brasil, incorporando as mais recentes abordagens, autores, objetos e obras que trazem novos aportes teórico-metodológicos para o campo. Neste sentido, propõe-se refletir sobre a própria escrita da história do cinema brasileiro, de modo a abranger outras categorias críticas de análise que perpassam nossa produção cinematográfica.
    Entendemos o próprio cinema brasileiro como um objeto em construção. Nesse percurso, faz-se necessário examinar como essa construção articula e conflitua diferentes setores da sociedade, tensionando os campos artísticos e institucionais, que incluem produtores, públicos, diferentes janelas de difusão e instâncias de preservação das imagens e sons, além do próprio Estado. O cinema brasileiro é também produto resultante dos embates no campo da arquivística audiovisual e das políticas públicas. Por isso, articulado ao eixo do debate historiográfico, propomos refletir sobre o cinema brasileiro a partir dos desafios de sua sobrevivência, hoje ameaçada pelo ataque sistemático ao debate cultural no país e atravessada pelo paradoxo das tecnologias digitais, que, ao mesmo tempo que permitem a relativa democratização do acesso à produção, revelam-se uma grande incógnita do ponto de vista da preservação de seus dados digitais.

Objetivo

    O seminário visa reunir e ampliar o campo das pesquisas sobre a atividade cinematográfica no Brasil, tendo por foco o seu desenvolvimento histórico, o debate historiográfico que dele decorre, e as estratégias políticas e culturais de sobrevivência de suas imagens e sons. Propomos partir tanto de períodos específicos quanto de temas acionados pela atualidade, como as novas tecnologias, os hibridismos, os gêneros cinematográficos, as intermidialidades e interculturalidades.
    Nesse contexto, são pertinentes trabalhos que ampliem os horizontes do conhecimento sobre a história do cinema brasileiro a partir da revisão bibliográfica; de levantamento e análise filmográficos; das pesquisas implicadas na restauração de filmes e documentos; do diálogo do cinema com outras mídias e artes. Passam ainda pela discussão historiográfica as estratégias de sobrevivência do cinema brasileiro os debates em torno da recepção; as tecnologias; a relação com o cinema estrangeiro e os estudos étnico-raciais.

Aspecto

    Tradicionalmente, os estudos sobre o cinema no Brasil procuraram estabelecer trajetórias e narrativas panorâmicas que dessem conta da continuidade entre linhas de produção e estabelecessem coerências internas. Esse projeto historiográfico encontra-se consolidado em autores como Alex Viany (Introdução ao cinema brasileiro), Paulo Emílio Salles Gomes (Cinema: trajetória no subdesenvolvimento) e Glauber Rocha (Revisão crítica do cinema brasileiro), dentro de um conjunto de produções intelectuais a que Jean-Claude Bernardet denominou de “historiografia clássica do cinema brasileiro”. A partir dos anos 1970, essa história foi continuada, aprofundada, ampliada e também questionada com os trabalhos de pesquisadores como Maria Rita Galvão, Jean-Claude Bernardet, José Inácio de Melo Souza, José Mário Ortiz Ramos, Ismail Xavier, Fernão Ramos, João Luiz Vieira, entre muitos outros iniciadores de um processo – ainda em curso – de renovação da escrita historiográfica do cinema brasileiro.
    Por outro lado, o acesso à filmografia e a pesquisa documental que dão suporte à construção da história do cinema no Brasil ampliou-se dos anos 1980 para cá. As políticas de preservação e de difusão da memória cinematográfica brasileira (ainda que sempre aquém do que seria necessário), bem como o desenvolvimento de novas metodologias de pesquisa e o debate teórico nas universidades, permitiram aos novos pesquisadores analisar o acervo audiovisual brasileiro a partir de outras abordagens, questionando discursos ideológicos até então pouco estudados; dando visibilidade aos circuitos e práticas de exibição; trazendo à luz a recepção crítica; discutindo as relações entre o audiovisual e as questões de identidade nacional; introduzindo os diálogos transnacionais e de intermidialidade; dando maior destaque aos setores da exibição e da distribuição, bem como aos mecanismos históricos de financiamento e à relação entre cinema e Estado etc.
    Além das questões acima apontadas, outras perguntas igualmente importantes se apresentam hoje diante do pesquisador de cinema brasileiro: de que forma as novas tecnologias e, em decorrência delas, a digitalização e o acesso aos arquivos, permitiram e permitirão novos e diferentes conhecimentos, resultando no estabelecimento de cronologias e no aprofundamento das críticas às narrativas canônicas? Como as alteridades internas e externas criam tensões para a compreensão da história do cinema brasileiro? Como pensar a história e a historiografia desse cinema relacionando o regional, o nacional e o internacional? De que maneira os embates da sociedade brasileira na atualidade acionam outros objetos e sujeitos que conduzem a abordagens renovadas (como o papel das mulheres, por exemplo), aliadas também às novas possibilidades e imposições tecnológicas e mercadológicas?
    Esse processo de renovação dos estudos historiográficos sobre o cinema no Brasil tem paralelo com o processo desencadeado por volta dos anos 1970-80, na Europa e nos Estados Unidos, quando lá se desenvolveram as chamadas “novas histórias do cinema”, conforme a denominação de David Bordwell. Ao enfatizarmos o diálogo com as “novas histórias”, visamos contribuir para a ampliação dos horizontes do conhecimento sobre a história do cinema e do audiovisual a partir de revisões bibliográficas; do levantamento e análise filmográficos; e da consulta a arquivos públicos e privados, bem como a acervos desconhecidos ou pouco utilizados. Nesse sentido, faz parte do horizonte do seminário a contribuição de autores como Jean-Claude Bernardet, Carlos Roberto de Souza, David Bordwell, Mariano Mestmer, Kristin Thompson, Sylvie Lindeperg, Robert C. Allen, Richard Abel, Douglas Gomery, Michelle Lagny, Paulo Antonio Paranaguá, Ana Laura Lusnich, Andrea Cuarterolo, entre vários outros.
    Cabe ainda observar que nosso seminário decorre de um amplo diálogo com a historiografia brasileira, abarcando desde autores de referência, como os já citados Paulo Emílio Salles Gomes, Alex Viany, Glauber Rocha, Maria Rita Galvão, Jean-Claude Bernardet, José Inácio de Melo Souza, entre outros, até os mais recentes estudos que incluem a publicação de livros como Viagem ao cinema silencioso do Brasil (2011), organizado por Samuel Paiva e Sheila Schvarzman; Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro (2017), organizado por Karla Holanda e Marina Cavalcanti Tedesco; e o livro em dois volumes Nova História do cinema no Brasil (2018), organizado por Fernão Ramos e Sheila Schvarzman.

Bibliografia

    ALLEN, Robert C. GOMERY, Douglas. Teoría y práctica de la historia del cine. Barcelona, Buenos Aires, México: Editora Paidós 1995.
    ALTMAN, Rick. Silent film sound. Nova Iorque: Columbia University Press, 2004.
    BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
    CONDE, Maite – Consuming Visions. Cinema, Writing and Modernity in Rio de Janeiro (2012),University of Virginia Press, 2012
    DENNISON, Stephanie – Remapping Brazilian Film Culture in the Twenty-First Century, Londres : Routledge, 2019
    GOULART, Isabella. Perdidos na tradução: as representações da latinidade e as versões em espanhol de Hollywood no Brasil (1929-1935). Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
    LAGNY, Michèle. Cine e historia: problemas y métodos en la investigación cinematográfica. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1997.
    MELO, Luís Rocha. “Historiografia Audiovisual: a história escrita pelos filmes”. Revista ARS. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA – Universidade de São Paulo, v. 14, nº 28. São Paulo: 2016, pp. 221-245.
    NAGIB, Lúcia; JERSLEV, Anne (ed.). Impure cinema: intermedial and intercultural aproches to film. London, New York: I.B. Taurus, 2014.
    RAMOS, Fernão, SCHVARZMAN, Sheila (orgs.) Nova História do Cinema Brasileiro vol.1 e 2. São Paulo: Editora Sesc, 2018
    SOUZA, Carlos Roberto de. “Estratégias de Sobrevivência” IN PAIVA, Samuel; SCHVARZMAN, Sheila (orgs.). Viagem ao Cinema Silencioso do Brasil. Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p.14 a 28.
    SOUZA, José Inácio de Melo. Imagens do passado. São Paulo: Editora Senac, 2004.

Coordenadores

    Sheila Schvarzman
    Luís Alberto Rocha Melo
    Isabella Regina Oliveira Goulart