Trabalhos Aprovados 2017

Ficha do Proponente

Proponente

    Ana Luiza Rocha de Siqueira (UFMG)

Minicurrículo

    Bacharel em Comunicação Social pela UFMG e mestranda em Comunicação Social na mesma instituição. Foi programadora do Cine Humberto Mauro, coordenadora de programação do Festival internacional de Curtas de Belo Horizonte e curadora da mostra de cinema infantil do Festival SACI. Atuou como diretora assistente do filme A cidade onde envelheço (melhor filme Festival de Brasília e Festival de Biarritz, dentre outros). É tradutora de línguas inglesa e francesa.

Ficha do Trabalho

Título

    A tarefa do cineasta: problemas de tradução no filme Kurdish Lover

Resumo

    Como a ausência de um idioma comum, ou a passagem de uma língua a outra, no interior do filme, atuam na escritura de um obra, constituindo-se como elemento produtivo? Através do documentário Kurdish Lover, de Clarisse Hahn, abordaremos a relação entre cinema e tradução, investigando como situações de diferença lingüística produzem efeitos narrativos e de que maneira o filme se constitui como espaço comum ou de compartilhamento, sem que essas diferenças sejam apagadas ou apaziguadas.

Resumo expandido

    Abordaremos a relação entre cinema e tradução a partir do filme Kurdish Lover, (Clarisse Hahn, 2010), investigando como o encontro entre diferentes idiomas e a tradução que ele provoca (seja verbal ou gestual, plenamente compreendida ou quase nada, deliberadamente equívoca, ambígua ou límpida) atua no interior do filme, em sua escritura, constituindo-se como elemento produtivo. Nos perguntaremos como, diante das situações de diferença lingüística, o filme se propõe como espaço comum ou de compartilhamento, sem que haja apaziguamento ou apagamento das diferenças.

    Em Kurdish Lover, o desconhecimento da língua faz com que o cinema – as imagens – seja recurso não apenas de registro, mas de mediação e aproximação da diretora ao mundo do companheiro. Depois de uma breve passagem por imagens da diáspora curda em Paris, Clarisse Hahn parte para o Curdistão, esse país que se recusa a morrer, resistindo com sua própria língua, religião e cultura, mesmo sem ter jamais oficialmente existido. É a terra de seu companheiro de vida, ficamos sabendo de início, e ela está ali visitando sua família e região de origem. A cineasta não compreende a língua local, mas isso não a intimida e ela segue filmado a intimidade da família, as relações sociais fora da casa, a sombra da diáspora na vida local, a presença ostensiva dos guardas turcos, o espaço de crise, de guerra, que não é mostrada frontalmente mas intuída em seu reflexo na comunidade. Emerge então a questão de como filmar, enquadrar, hierarquizar quando uma língua e todo um sistema cultural não pode ser diretamente acessado. Para onde direcionar o câmera, como interagir, como compreender os limites e o impacto de sua presença? Como se dá a relação, a construção de um espaço compartilhado no encontro entre esses dois mundos? Como o processo se inscreverá na escritura fílmica? Apenas depois a cineasta compreenderá completamente o que é dito e poderá montar o filme, sem que com isso a diferença lingüística seja anulada no resultado final: ela será antes abrigada e incorporada à narrativa.

    Para tratar a relação entre cinema e tradução, nos valeremos da análise da materialidade do filme e também de teorias da tradução, em dois sentidos: o primeiro procura pensar a tradução para além dos seus aspectos lingüísticos, na medida em que os filmes nos apresentam situações, experiências e cenas, nas quais são mais amplos os elementos em jogo (o corpo, a cultura ou o habitus). O segundo sentido procura pensar as diferenças, problemas e fracassos da tradução como produtivos para a linguagem e a comunicação (e em nosso caso, para o filme). Portanto, nos interessam as teorias da tradução na Literatura (a partir, por exemplo, de Benjamin, 2008), mas principalmente sua apropriação no campo da Antropologia. Nessa direção, uma teoria que nos importa de perto é a do perspectivismo que parece se interessar menos pela tradução do que pelo equívoco. Este “não é um erro, um engano, um logro ou uma falsidade, mas o fundamento mesmo da relação que o implica, e que é sempre uma relação com a exterioridade” (Viveiros de Castro, 2004, p. 11). Por fim, ligada à experiência, a tradução pode ser pensada menos como produto acabado do que como trabalho, como fazer. Algo que nos sugere Paul Ricoeur quando, via Benjamin, lembra o duplo sentido da palavra: “trabalho da lembrança” e “trabalho do luto”. “Na tradução também se procede a uma certa salvação e a um certo consentimento de perda”. (2011, p.22). Nesse contexto, procuraremos apreender as diferenças de língua, os equívocos e os fracassos na mise en scène documentária (Comoli, 2008), já que ali acontecem os encontros entre diretor e personagens que não compartilham a mesma língua. Em seguida, nos interessa a maneira como o filme se desenvolve ou se move por esta dificuldade ou por este obstáculo, o modo como ele se torna um espaço comum que precisará ser criado.

Bibliografia

    BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In: Castello Branco, L. (Org.) A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quarto traduções para o português. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.

    COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção,
    documentário. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

    RICOEUR, Paul. Sobre a tradução. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.

    VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation. In: Tipiti: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2004.