Trabalhos Aprovados 2017

Ficha do Proponente

Proponente

    Diego Pacheco Damasceno (Unicamp)

Minicurrículo

    Estudante de doutorado em Multimeios pela Universidade de Campinas (Unicamp), onde desenvolve uma tese sobre o figural no cinema brasileiro contemporâneo (2000-2015). Jornalista, tem mestrado em Études Cinématographiques et Audiovisuelles pela Universidade de Paris 3 Sorbonne Nouvelle, França.

Ficha do Trabalho

Título

    O personagem como figura: o caso de Jogo de cena

Seminário

    Corpo, gesto, performance e mise en scène

Resumo

    Este artigo descreve como a figuração dos personagens no documentário Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, problematiza as noções de representação e narrativa cinematográfica e se relaciona com o campo de problemas aberto pelo conceito de figural. Constatado que o filme trabalha com 1) pessoas reais, entrevistadas; e 2) atrizes que interpretam personagens ficcionais, sugerimos a existência de um terceiro modo de aparição, que chamaremos de “personagem-figura”.

Resumo expandido

    A penetração do conceito de figural nos estudos fílmicos impactou o estudo do personagem. Oriundo da filosofia, o termo designa uma dimensão do visível em que a legibilidade é erodida e que apela apenas à sensibilidade (e não à razão), incapaz, portanto, produzir sentidos de natureza não-verbal (discurso) (Dubois, 1999). Na teoria do cinema, o figural denomina uma ordem de sentido não submetida às disposições que produzem a narrativa e a representação (Aumont, 1996). Convencionou-se chamar “figura” o modo de configurar a imagem que permite vislumbrar a dimensão figural da imagem. Decorre daí uma série de estudos que valorizam a plasticidade da imagem como instância em que nenhum significado adere, espécie de significante puro. A ideia do personagem como figura contesta a tradicional triangulação entre um corpo (forma), uma personalidade (representação) e um percurso dramático (narrativa), que funda definições literárias do personagem.
    Brenez (1997) propõe analisar o personagem a partir de sua dimensão plástica, como corpo, e de parâmetros como formas de aparição, movimento, duração e montagem. Dubois (1999) define a figura como configuração da imagem que conjuga uma forma (visível), um conceito (denomina um modo de significação) e um efeito (opera transformação e gera sentido). Nessa perspectiva, a análise do personagem se transforma. O que se vê na tela não é a projeção de um sujeito em um corpo, individual e fixado, mas um personagem que é “sistema de transformações” capturado em “uma rede de relações mais material do que psicológica” (Leandro, 2007). Brenez (1997, p. 180) entende que “o personagem não é desde o início uma biografia, uma individualidade, um corpo ou uma iconografia, ele é uma circulação simbólica, feita de elementos plásticos, de esquemas narrativos e de articulações semânticas”. A ideia é retirar o personagem da relação de ancoragem em uma realidade concreta ou imaginária e pensá-lo para além, ou aquém, da representação: “onde se via uma função narrativa ou um papel, desenha-se um corpo, uma figura” (Leandro, 2007).
    As considerações acima embasam a proposta de análise deste artigo, que se debruça sobre os modos de composição do personagem no documentário Jogo de cena, de Eduardo Coutinho. No filme, embaralham-se os relatos de um grupo de mulheres com as performances de atrizes que interpretam as histórias contadas por meio de personagens ficcionais.
    Duas situações caracterizam o sistema de personagens de Jogo de cena. Uma em que o personagem representa a si mesmo: sua aparição remete à sua própria existência, concreta, fora do universo fílmico; quando fala, ele de si mesmo. Outra, em que o personagem narra o outro: sua aparição remete à existência de uma pessoa real, que não aquela que interpreta o personagem no filme; quando fala, ele fala de outro. Falar de si corresponde a atestar a semelhança: a forma da presença (fisionomia, corpo, voz, postura, ideias, história de vida) no filme corresponde à forma da presença no mundo histórico. Por outro lado, falar do outro corresponde a atestar a diferença: a forma da presença no filme não corresponde àquela do mundo histórico, pois é uma pessoa (atriz) que toma o lugar de outra pessoa (real), representando-a.
    Nossa proposta é que há um terceiro modo de aparição, que chamaremos de personagem-figura. Neste modo, o personagem não fala nem de si mesmo nem do outro, portanto, não faz remissão a nenhuma pessoa. O personagem-figura não funda seu sentido na factualidade da presença (a sua, a do outro ou a de ambos), mas da remissão que faz aos efeitos (sensoriais e reflexivos) que o dispositivo fílmico causa. Ele remete não a alguém, mas ao próprio jogo de correspondências e diferenças entre pessoas e modos discursivos que o filme encena. Ele é o traço de um processo que percorre todo o filme e o caracteriza, e que pode ser descrito como o vacilar das fronteiras entre pares opostos como outro e mesmo, o real e o imaginário, a ficção e documentário.

Bibliografia

    AUMONT, J. À quoi pensent les films. Paris: Nouvelles Éditions Séguier, 1996.
    BRENEZ, N. De la figure en general e du corps en particulier : L’invention figurative au cinéma. Bruxelas: De Boeck, 1998.
    DUBOIS, P. “La question des Figures à travers les champs du savoir : Le savoir de la lexicologie : Notes sur Figura d’Erich Auerbach”. In: AUBRAL, F.; CHATEAU, D. (dir.). Figure, figural. Paris: L’Harmattan, 1999. pp. 11-24.
    LEANDRO, A. “Du personnage à la figure”. In: LAVOCAT, F.; MURCIA, C.; SALADO, R. (orgs.). La Fabrique du personnage. Paris: Honoré Champion Editeur, 2007. pp. 511-519.
    VANCHERI, L. Les pensées figurales des images. Paris: Armand Colin, 2011.