Trabalhos Aprovados 2016

Ficha do Proponente

Proponente

    Carla Ludmila Maia Martins (UNA)

Minicurrículo

    Doutora em Comunicação Social pela FAFICH/UFMG, com período sanduíche na Tulane University, em New Orleans/EUA. Integra o corpo docente do Instituto de Comunicação e Artes do Centro Universitário UNA. Faz parte do coletivo Filmes de Quintal, que realiza o forumdoc.bh: Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte.

Ficha do Trabalho

Título

    Destruir, dizem elas: uma revisita a Daisies, de Vera Chytilová

Seminário

    Cinema Queer e Feminista

Resumo

    Propomos voltar a “Daisies” (Vera Chytilová, 1966), filme emblemático para os estudos feministas, buscando identificar como a obra trabalha formalmente o conceito de destruição que ampara sua narrativa. O objetivo é tirar consequências desse trabalho, em que forma e conteúdo afetam-se mutuamente, para atualizar a força provocadora do filme, que apesar das quatro décadas passadas desde sua realização, permanece rara e urgente.

Resumo expandido

    Há muito sentido em considerar “Daisies” (Vera Chytilová, 1966), como uma das principais obras feministas do cinema, pela maneira como suas personagens são investidas de um potencial libertário e contestador que subverte as expectativas relativas ao gênero. Como afirma Lim, “para aqueles que consideram Daisies como uma alegoria feminista, essas heroínas são cativantes não apenas por sua habilidade de revelar a feminilidade como uma máscara naturalizada, mas por seu deliberado e malicioso jogo com esses signos”.
    As cenas de jantar com os cavalheiros mais velhos são exemplo desse jogo. No decorrer da narrativa, as duas Marias irão seduzir senhores mais velhos lançando mão de uma pretensa inocência, em situações que se repetem: o homem convida a morena para jantar, ela finge se surpreender quando sua irmã “flagra” a situação, chegando de surpresa, e assim jantam os três. A loira passa a pedir de tudo um pouco, diante do olhar estupefato do senhor e do falso embaraço da morena. Quando finalmente chega o momento de estarem a sós, partindo juntos no trem, a morena foge, vai ao reencontro da loira na plataforma, e o senhor, abandonado e desorientado, parte sozinho. O insaciável apetite das garotas torna-se análogo ao apetite sexual masculino mas, dessa vez, como numa revanche, apenas o primeiro é satisfeito. São elas que levam a melhor, que tiram vantagem dos homens. O filme busca implodir, dessa maneira, relações de opressão estabelecidas, e não apenas as de gênero: as cenas de despedida na estação, em que homens brancos e ricos são “deportados” em vagões de trem lotados, remetem, por inversão, a outras violências históricas (inevitável pensar, sobretudo num filme realizado no leste europeu, nos trens nazistas que conduziam os judeus aos campos de concentração).

    O filme é também pontuado por alegorias à castração, quando elas cortam comidas fálicas (uma salsicha, ovos) com a tesoura. Ademais, há uma contundente sátira aos ideais de beleza feminina construídos através dos séculos, seja pelo recurso de retratá-las como bonecas ou marionetes, seja pela desconstrução da imagerie feminina: a descompostura das jovens, a falta de modos à mesa, suas caretas, seus gestos inusitados e jocosos como cutucar o nariz, a maneira como não se interessam pelo amor romântico, são alguns operadores dessa desconstrução, que está bem distante de chegar a termo, ainda hoje.

    Como afirma sua diretora, trata-se de trabalhar a forma do filme a partir de uma base conceitual: “como o conceito do filme é a destruição, a forma se torna destrutiva também”, ela afirma. Através de uma série de procedimentos formais – jump-cuts, alterações bruscas de cor, descontinuidade espacial – e de uma rigorosa mise-en-scéne, “Daisies” implode os lugares estáveis da representação da mulher no cinema, inclusive aquele que permitiria, às espectadoras, uma identificação com as duas jovens “Marias”. A maneira grotesca ou bizarra como são caracterizadas – mimadas, cruéis, vaidosas e superficiais – dificulta bastante essa identificação.

    O trunfo do filme está justamente na possibilidade de convocar olhares e interpretações díspares, sem ponto fixo, como quem implode ou destrói, de dentro do jogo de representações, os padrões de feminilidade habitualmente vistos no cinema. A energia destrutiva que contamina “Daisies”, tanto conceitual quanto formalmente, oferece bases para refletir sobre como pode o cinema responder à necessidade de criar não apenas “outras” mulheres, mas outros sujeitos, estranhos à normalidade, e com eles outros sentidos, não exatamente determináveis – ou, para fazer referência à frase sussurrada por uma das personagens, sentidos que, como a vida, ou como o próprio desejo, restarão sempre voláteis.

Bibliografia

    LAURETIS. Figures of resistance. Essays in feminist theory. Urbana and Chicago: University of Illinois Press Chicago, 2007.
    LIM, Bliss Cua. Dolls in fragments: Daisies as feminist allegory. In: Camera Obscura, v. 16, n. 2. Duke University Press, 2001, p. 37-77.
    RAINFORTH, Dylan. This film’s going bad: collaborative cutting in Daisies. Senses of cinema. Disponível em: http://sensesofcinema.com/2007/cteq/daisies/